O Globo, n. 32761, 18/04/2023. Mundo, p. 22
Neutralidade em xeque
Eliane Oliveira
Paula Ferreira
A União Europeia (UE) e os Estados Unidos responderam ontem às declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a guerra na Ucrânia, nas quais o chefe de Estado brasileiro responsabilizou tanto Moscou quanto Kiev pelo conflito, iniciado em 24 de fevereiro do ano passado com a invasão russa do país vizinho. Lula, que ontem recebeu o chanceler russo, Sergei Lavrov, em Brasília, também culpou Washington e o bloco europeu pelo prolongamento do conflito.
Em Washington, o portavoz do Conselho de Segurança Nacional (CSN) da Casa Branca, John Kirby, disse que “o Brasil está repetindo a propaganda da Rússia sem olhar para os fatos”.
— É profundamente problemático como o Brasil abordou essa questão de forma substancial e retórica, sugerindo que os Estados Unidos e a Europa de alguma forma não estão interessados na paz ou que compartilhamos a responsabilidade pela guerra — afirmou ele em conversa com jornalistas.
— Francamente, neste caso, o Brasil está repetindo a propaganda da Rússia sem olhar para os fatos.
Rechaço sobre Criméia
O porta-voz ainda comentou a sugestão de Lula de que a Ucrânia deveria ceder a Crimeia, ocupada pela Rússia em 2014, em nome da pacificação da guerra.
— Os comentários mais recentes do Brasil de que a Ucrânia deveria considerar ceder formalmente a Crimeia como uma concessão pela paz são simplesmente equivocados, especialmente para um país como o Brasil que votou para defender os princípios de soberania e integridade territorial na Assembleia-Geral da ONU —salientou Kirby.
Sobre a visita de Lavrov, Kirby reforçou que a soberania dos países permite receberem quem quiserem, mas ponderou que a mesma disponibilidade deve ser oferecida aos representantes de Kiev.
O porta-voz do CSN disse, ainda, que Lula e líderes de outros países que abriram a agenda para Lavrov —que está em viagem pela América Latina —deveriam pressioná-lo a parar de “bombardear cidades, hospitais e escolas ucranianas” e “retirar as forças russas da Ucrânia”.
Por sua vez, Peter Stano, porta-voz principal para Assuntos Externos da UE, salientou que a Rússia é a “única responsável” pelo conflito no Leste Europeu, o maior no continente desde a Segunda Guerra.
— O fato número um é que a Rússia, e somente a Rússia, é responsável [pela guerra]. Ela gerou provocações e agressões ilegítimas contra a Ucrânia. Não há questionamentos sobre quem é o agressor e quem é a vítima —afirmou.
Stano ainda rebateu as críticas do mandatário brasileiro sobre o apoio do Ocidente a Kiev.
— Os Estados Unidos e a União Europeia trabalham juntos, como parceiros de uma ajuda internacional. Estamos ajudando a Ucrânia em exercícios para legítima defesa — disse, lembrando que o Brasil é um dos 143 países que condenaram a invasão ao território ucraniano na ONU.
— Não é verdade que os EUA e UE estão ajudando a prolongar o conflito. Nós oferecemos inúmeras possibilidade à Rússia de um acordo de negociação em termos civilizados.
Encontro sem imagens
Ontem, Lula recebeu Lavrov, mas não foram divulgadas imagens do encontro, como é de praxe, nem um comunicado. Mais cedo, Lavrov se encontrara com o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, em uma reunião na qual criticaram as sanções econômicas aplicadas contra Moscou por nações ocidentais. Segundo Lavrov, os dois países têm visões comuns em relação ao que ocorre no Leste Europeu.
— As visões do Brasil e da Rússia são similares em relação aos acontecimentos que ocorrem no mundo, e estamos atingindo uma ordem mundial mais justa, correta, baseando-se no direito, e isso nos dá uma visão de mundo multipolar —afirmou Lavrov, que chamou os brasileiros de “parceiros”, enfatizando que as relações bilaterais sempre foram “cordiais, de confiança e amizade”.
No domingo, o presidente Lula voltou a dizer que a Ucrânia também foi responsável pela decisão de entrar em guerra com a Rússia. A declaração aconteceu momentos antes de encerrar a visita a Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, última escala da viagem à Ásia que teve como destino principal a China.
— A construção da guerra será mais fácil que a saída da guerra. Porque a decisão da guerra foi tomada por dois países. E agora nós estamos tentando construir um grupo de países que não têm nenhum envolvimento com a guerra, que não querem a guerra, que desejam construir paz no mundo, para conversarmos tanto com a Rússia quanto com a Ucrânia —declarou .
Lula, que vem propondo a formação de um grupo de países neutros para mediar negociações de paz entre Rússia e ucrânia, disse que “é necessário conversar também com os EUA e a UE” sobre o assunto.
— Ou seja, nós precisamos convencer as pessoas de que a paz é a melhor coisa para estabelecer qualquer processo de conversação. Do jeito que está a coisa, a paz está muito difícil.
Ontem, o chanceler Mauro Vieira rechaçou a afirmação da Casa Branca de que o Brasil está repetindo a propaganda da Rússia. Inicialmente, ele disse que não tinha ouvido a declaração da Casa Branca sobre o tema e argumentou que Brasil e Rússia tinham uma longa relação.
— Não posso dizer nada, porque não ouvi e não sei do que se trata. Só posso dizer que o Brasil e a Rússia completam este ano 195 anos de relações diplomáticas com embaixadores residentes. São dois países que têm uma história em comum —disse.
Convite para visitar Rússia
Em seguida, ao ser informado por jornalistas sobre o teor da declaração da Casa Branca, rebateu:
— Não concordo de forma alguma [com a declaração] , não sei como, por que [o porta-voz] chegou a essa conclusão. Desconheço as razões pelas quais disse — afirmou Vieira.
Perguntado se ele concorda com a declaração de Lavrov de que Brasil e Rússia têm visões similares e comuns a respeito da situação no Leste Europeu, o chanceler respondeu:
— A conversa, tanto comigo como com o presidente Lula, não entrou em quadro de guerra. Falamos sobre paz. O presidente reiterou que o Brasil está disposto a cooperar com a paz.
Segundo Vieira, a reunião de Lavrov com Lula foi uma visita de cortesia em que o chanceler russo entregou ao presidente um convite para uma viagem à Rússia.