O Estado de São Paulo, n. 46676, 03/08/2021. Política p.A6

 

TSE instaura inquérito contra Bolsonaro

 

Weslley Galzo

Vinícius Valfré 

 

 

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou na noite de ontem, por unanimidade, duas medidas contra o presidente Jair Bolsonaro por declarações infundadas de fraude no sistema eletrônico de votação e ameaças às eleições de 2022. Os ministros decidiram abrir um inquérito administrativo e, ainda, pedir a inclusão de Bolsonaro em outra investigação, a das fake news, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). O desfecho dessas apurações pode atrapalhar os planos de Bolsonaro, levando à impugnação de eventual registro de candidatura à reeleição ou até mesmo inelegibilidade.

A decisão do TSE representa até agora o mais duro movimento do Judiciário na tentativa de conter ameaças do presidente, que tem condicionado a realização das eleições à aprovação do voto impresso, hoje em tramitação na Câmara. O inquérito administrativo, proposto pela Corregedoria-geral da Justiça Eleitoral, vai apurar se, ao promover uma série de ataques sem provas às urnas eletrônicas, Bolsonaro praticou "abuso do poder econômico e político, uso indevido dos meios de comunicação, corrupção, fraude, condutas vedadas a agentes públicos e propaganda extemporânea".

Na última quinta-feira, o presidente usou uma transmissão ao vivo pelas redes sociais e a estrutura do Palácio da Alvorada para exibir uma série de vídeos antigos e informações falsas contra as urnas eletrônicas, alegando que o sistema é fraudável. Na live, também divulgada pela TV Brasil, uma emissora pública, Bolsonaro admitiu, porém, não ter provas das fraudes.

Ao aprovar o envio de notícia-crime ao Supremo para que Bolsonaro seja incluído como investigado no inquérito das fake news, que tem como relator o ministro Alexandre de Moraes e já relaciona aliados do governo a ações para desacreditar instituições, os magistrados fecharam o cerco contra o Palácio do Planalto.

O presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, disse que o Brasil está à beira da "erosão da democracia" e reagiu com veemência aos ataques de Bolsonaro. "Há coisas erradas acontecendo no País e nós todos precisamos estar atentos. Precisamos das instituições e da sociedade civil alertas", afirmou Barroso na primeira sessão do tribunal após o recesso do Judiciário. "Nós já superamos os ciclos de atraso institucional, mas há retardatários que querem voltar ao passado."

Sem citar Bolsonaro, o ministro destacou que "voto impresso não é contenção adequada para o golpismo" e em várias ocasiões mencionou o perigo de líderes autoritários, extremistas e populistas, sob o argumento de que, embora eleitos pelo povo, eles desconstroem pilares da democracia, procurando "demonizar" a imprensa e "colonizar" os tribunais constitucionais.

"A ameaça à realização de eleições é uma conduta antidemocrática. Suprimir direitos fundamentais, incluindo os de natureza ambiental, é uma conduta antidemocrática. Conspurcar o debate público com desinformação, mentiras, ódio e teorias conspiratórias é conduta antidemocrática", insistiu Barroso, que lembrou a tentativa de invasão do Capitólio, em janeiro, nos Estados Unidos, quando o então presidente Donald Trump perdeu as eleições. Para o presidente do TSE, o voto impresso "é a porta aberta" para a ocorrência de fraudes, o incentivo ao coronelismo e às milícias.

 

'Harmonia'. Foi um dia marcado por reveses para o Planalto. Na primeira sessão deste segundo semestre, o presidente do Supremo, Luiz Fux, também reagiu aos ataques desferidos por Bolsonaro e disse que "os juízes precisam vislumbrar o momento adequado para erguer a voz diante de eventuais ameaças".

Assim como Barroso, Fux não citou o nome Bolsonaro, mas o recado foi claro quando cobrou respeito às instituições e afirmou que a manutenção da democracia exige permanente vigilância. "Harmonia e independência entre os poderes não implicam impunidade de atos que exorbitem o necessário respeito às instituições", disse ele.

A intervenção dos dois magistrados ocorre em momento de crise institucional entre os poderes, após acusações de Bolsonaro contra a urna eletrônica e sucessivas ameaças às eleições. Para responder aos ataques da cúpula do governo, Barroso também divulgou ontem nota assinada por ele ao lado de 15 ex-presidentes do TSE e ministros do Supremo, em defesa do atual sistema de votação. O documento contou, ainda, com a assinatura do vice-presidente do TSE, Edson Fachin, e do ministro Alexandre de Moraes, que presidirá o tribunal durante as eleições de 2022.

As mensagem de Fux e Barroso não deixaram dúvidas sobre os destinatários, incluindo no rol os comandantes das Forças Armadas. O Estadão revelou que no último dia 8 o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-al), recebeu recado do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, por meio de um interlocutor político. Na ocasião, o general pediu para comunicar, a quem interessasse, que não haveria eleições em 2022 sem aprovação do voto impresso. Lira procurou Bolsonaro e disse a ele que não contasse com a Câmara para ruptura institucional.

Pouco depois do discurso do presidente do Supremo, Bolsonaro deu uma resposta. "Queremos uma farsa no ano que vem ou uma eleição marcada por suspeição?", perguntou ele, em cerimônia no Ministério da Cidadania. "Chefe de Poder tem limite. Não é 'o que eu quero, pode confiar'. É o povo que tem de confiar", protestou.

Bolsonaro reclamou que "não se pode falar a verdade", sob pena de sofrer até processo de impeachment, no seu caso. "Se nos calarmos, nos curvarmos ao politicamente correto para atender às velhas práticas, (...) nós todos sucumbiremos", disse. Para o presidente, aliança com Centrão não se enquadra nessas práticas criticadas por ele.

 

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As vozes do Supremo

 

ANÁLISE:  Joaquim Falcão 

 

A importante novidade da fala institucional do presidente Luiz Fux não foi apenas o conteúdo. Foi ter falado. O que é incomum. Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) fala institucionalmente apenas em fevereiro. Na abertura do ano judiciário. Não no meio.

No segundo semestre de 2019, o então presidente Toffoli não fez pronunciamento. Disse apenas: "Bom retorno aos trabalhos". Em 2020, Toffoli também não fez pronunciamento. Disse apenas: "Manifestamos nosso pesar pelo falecimento de já cem mil brasileiros vítimas da pandemia... Iniciaremos os trabalhos com...". Agora mudou.

A voz institucional do Tribunal Superior Eleitoral, do ministro Luís Roberto Barroso, levou Bolsonaro a confessar que não tem provas de fraude nas eleições. Estimula o STF a falar. Fux, além do inusitado falar, o fez em duas línguas. Em duas vozes distintas. Uma voz verbalizou uma melodia "dolce":

a defesa da democracia liberal clássica. Cantou a independência dos poderes, a necessidade de instituições sólidas, do diálogo, da valorização da mídia. Reconheceu a importância da voz das ruas. Tabu e medo para muitos. Finaliza com a necessidade hoje do Brasil, guia da interpretação constitucional: vacina, emprego, comida na mesa.

A outra voz foi o que se chama na música clássica de "bocca chiusa". Cantar com boca fechada. Falou sem dizer. A melodia emitida deixa de ser "dolce". É tempestuosa. Dirigiu-se claramente a Bolsonaro "con fuoco", com fogo, vivo e agressivo.

As palavras ditas revelam. O Supremo não aceita impunidade. Não aceita o sorrateiramente agir. Nem o veladamente. Não aceitará ataques. Não admitirá atos que corroem a democracia. O Supremo será plenamente vigilante. Falar será o começo do agir?

Não é preciso citar Bolsonaro para falar com Bolsonaro.