O Globo, n. 32764, 21/04/2023. Mundo, p. 15

Contraofensiva financeira

Ana Rosa Alves
Amanda Scatolini
Eliane Oliveira
Janaína Figueiredo
Paula Ferreira


Menos de 48 horas após as últimas críticas da Casa Branca ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva—na terça-feira, a porta-voz do presidente Joe Biden voltara a condenar as falas do brasileiro, que dissera que os EUA estavam ampliando a guerra da Ucrânia —o governo americano, de surpresa, anunciou ontem a doação de US$ 500 milhões (R$ 2,5 bilhões) ao Fundo Amazônia. O valor, dez vezes maior do que o mencionado por Biden na visita de Lula a Washington em fevereiro, não estava em discussão com Brasília. E, segundo o enviado especial do Clima dos EUA John Kerry, isso “é só o começo”.

— Estou feliz de anunciar que pedirei verbas para que possamos contribuir com US$ 500 milhões para o Fundo Amazônia e outras iniciativas relacionadas ao clima pelos próximos cinco anos para ajudar o renovado esforço brasileiro de acabar com o desmatamento até 2030 — disse Biden na manhã de ontem, durante o Fórum das Grandes Economias sobre Energia e Clima, evento virtual do governo americano que reuniu lideranças das 26 maiores economias do mundo.

Marina: ‘Novo patamar’

Biden disse, ainda, que o governo americano trabalhará com outros países para mobilizar US$ 1 bilhão extra para a Amazônia e outros ecossistemas críticos na América Latina. Seu assessor para o clima ampliou ainda mais o escopo da atuação em entrevista ontem à Globonews:

— É apenas o início do trabalho com o Brasil, e a Amazônia será o foco —disse Kerry.

Ele também afirmou que Biden está pessoalmente angariando doações e encorajando o setor privado a contribuir com as ações, e disse que os EUA ainda têm “muito trabalho” a fazer junto com o Brasil.

Ao mesmo tempo que o novo valor doado para a preservação da maior floresta do mundo foi classificado como “um novo patamar” pela ministra Marina Silva (Meio Ambiente), o Itamaraty e o Palácio do Planalto avaliaram a doação como uma resposta ao suposto alinhamento de Lula com a China —em Pequim na semana passada o brasileiro chegou a dizer que “ninguém” o impediria de se aproximar do gigante asiático e visitou a fábrica da Huawei, “inimiga” dos americanos que a acusam de espionagem. Além disso, Lula passou a criticar americanos e europeus por fornecerem armas à Ucrânia, disse que Kiev é tão culpada pelo conflito com a Rússia quanto Moscou, e recebeu o chanceler russo, Sergei Lavrov, em Brasília.

O tom mais forte que o habitual na relação em Brasília e Washington foi a marca no começo desta semana. A Casa Branca publicamente criticou Lula. O governo brasileiro, por sua vez, começou a emitir sinais positivos ao Ocidente na terça-feira, quando Lula voltou a defender a integridade da Ucrânia, e fontes diplomáticas indicaram que o chanceler de Volodymyr Zelensky fora convidado antes de Lavrov para visitar o Brasil. Além disso, circulou a informação de que as viagens de Lula a Portugal — que começa hoje

— Espanha e Inglaterra serão usadas para recriar pontes, conforme antecipou O GLOBO.

O anúncio da doação num patamar nunca mencionado na visita de Lula a Biden ou nos encontros de Kerry em Brasília em fevereiro foi visto como uma forma de conter a aproximação do Brasil com a China e retomar os laços em bases propositivas e numa agenda comum e positiva.

‘Surpresa positiva’

Os últimos acontecimentos, sobretudo a aproximação da China por Lula e sua posição menos contundente contra a Rússia do que gostariam americanos e europeus, tiveram impacto em Washington, avaliaram as fontes brasileiras consultadas.

O tema ambiental fora conversado terça-feira passada num telefonema entre o assessor especial da Presidência da República, Celso Amorim, e o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, segundo confirmou o assessor de Lula ao GLOBO. Grande parte do diálogo entre ambos foi dedicado a esclarecer a posição do Brasil sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia, depois de declarações de Lula que causaram mal-estar em Washington.

Mas Amorim aproveitou o contato para abordar outros pontos considerados importantes pelo Brasil na agenda bilateral, entre eles, a contribuição americana ao Fundo Amazônia. No diálogo entre ambos, não se falou em montantes, e o número que continuava sobre a mesa eram os US$ 50 milhões que os EUA mencionaram durante a visita de Lula a Washington —valor que deixou profundamente decepcionada a delegação brasileira.

Ontem, ao ser perguntado sobre os novos anúncios de Biden, o assessor especial de Lula se mostrou surpreso:

— Para mim, pessoalmente, foi uma surpresa positiva. Agora, não é um presente, eles entendem que é o pagamento a um serviço ecológico, mas é bom, mostra um engajamento e é positivo.

Reflorestamento

O anúncio da Casa Branca foi comemorado por diplomatas brasileiros. A avaliação, nos bastidores, é que os EUA já sabiam que o governo do Brasil estava insatisfeito com o resultado da visita de Lula a Washington. Porém, a viagem de Lula à China, marcada por críticas à política externa americana, teria acelerado o processo de uma oferta melhor.

Lula também participou do evento em que foi anunciada a doação americana — o que acabou sendo a primeira interação com Biden desde os atritos diplomáticos desta semana. Em seu discurso, o brasileiro prometeu que os “danos ao meio ambiente causados pelo governo anterior serão revertidos”, reforçou medidas que vem tomando para cumprir a promessa de desmate zero, como a reativação do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm).

Lula citou o compromisso de reflorestar 12 milhões de hectares, a candidatura de Belém para sediar a COP30, em 2025, e a inédita Cúpula dos Países-Membros do Tratado de Cooperação Amazônica que pretende realizar em agosto. O presidente também defendeu a cooperação internacional como a única forma de fazer frente ao desafio climático, talvez o “maior da nossa geração”, afirmando que “não há sustentabilidade em um mundo em guerra”.

— Os efeitos da mudança do clima agravam ainda mais a pobreza, a fome e a desigualdade no mundo, flagelos que o Brasil combate com todas as forças. Também somos defensores intransigente da paz entre os povos. Não há sustentabilidade num mundo em guerra —disse Lula.

Oposição Republicana

A proposta de Biden para o Fundo Amazônia não deve ser das mais fáceis de pôr em prática, contudo. A oposição republicana controla a Câmara dos Deputados e historicamente se opõe à assistência financeira para países mais pobres se adaptarem e mitigarem os impactos do aquecimento global.

A ministra Marina Silva explicou que, tradicionalmente, a maior parte da cooperação americana era feita por outros mecanismos, de modo que um aporte desse tamanho via Fundo Amazônia é um marco.

— É um novo paradigma. Está partindo do zero para uma alavancagem de recursos que ao longo do tempo será muito importante, inclusive para alavancar recursos de outros países —afirmou Marina.