O Estado de S. Paulo, n. 46654, 12/07/2021. Internacional, p. A11

EUA precisam superar medo de instabilidade externa

Fareed Zakaria


The Washington Post

Pergunta: Quando e por que razão o Reino Unido anexou o Sudão? A resposta é em 1899, depois de uma década e meia de lutas. As forças britânicas enfrentaram as milícias sudanesas que se reuniram sob a bandeira de um líder islâmico carismático que se chamava Mahdi, e os britânicos viam como um terrorista fanático.

Há uma lição de história que vale a pena aprender aqui sobre o alcance excessivo do imperialismo, quando os Estados Unidos deixam o Afeganistão. Muitas vozes advertem que o que se segue será a instabilidade e eventualmente uma tomada de poder pelo Taleban. O país voltará a ser uma base para o terrorismo, argumentam eles, e por isso devemos permanecer para mantê-lo estável e em mãos amistosas.

A verdade é que, desde 11 de setembro de 2001, Washington e a maioria dos governos avançados desenvolveram uma poderosa capacidade de interceptar e rastrear terroristas, impedindo que lancem ataques em larga escala. Grupos como a Al-qaeda e o Estado islâmico estão em farrapos, caçados em todos os lugares e fragmentados em forças locais. Eles operam em vários países instáveis, tais como Afeganistão, Mali e Iêmen. Este é um argumento a favor dos esforços antiterroristas globais, não da ocupação sustentada de qualquer lugar em particular.

Mas o que impulsionou a ocupação americana no Afeganistão e no Iraque foi uma aversão imperialista a qualquer instabilidade. Durante o final do século 19 o Reino Unido temia que a instabilidade no Sudão – especialmente a provocada por terroristas islâmicos – extrapolasse e ameaçasse o acesso britânico ao Canal de Suez, no Egito. Esse canal abria as rotas marítimas para a Índia, a joia da coroa do Império Britânico.

Como superpotência global, o Reino Unido tinha temores similares em muitas partes do mundo. Assim, Londres enviou dezenas de milhares de soldados para combaterem em guerras no Sudão e em outros lugares, anexando províncias remotas da África e Ásia (incluindo o próprio Afeganistão) – e tudo isso se transformou num peso muito grande para os britânicos. Eles então deixaram que o seu papel como poder maior revertesse, com o poder menor controlando a situação.

O paralelo não é exato, claro, mas os Estados Unidos são a única superpotência do mundo neste momento. Será uma infelicidade se o Taleban retomar o controle do Afeganistão. E Washington deveria apoiar o governo de Cabul e trabalhar com outros países da região – China, Índia e sobretudo o Paquistão – para chegar a um acordo de divisão de poderes sustentável para o Afeganistão. Mas Washington também precisa pensar, como o governo Joe Biden parece estar fazendo, que as forças americanas passaram duas décadas no Afeganistão. Fizeram o que podia ser feito, desintegrando a Al-qaeda e matando Osama bin Laden. Em última análise, o Afeganistão não é tão crucial para a posição dos Estados Unidos como potência global.

O maior erro do Reino Unido durante suas expedições imperialistas na virada do século 20 foi não conseguir distinguir entre seus interesses vitais e aqueles que eram periféricos. Pelo contrário, o mais brilhante estrategista americano da Guerra Fria, George F. Kennan, sempre afirmou que a Guerra Fria dependia de um pequeno número de centros de poder. No final dos anos 40 disse que eles eram apenas cinco – Estados Unidos, Reino Unido, a região da Alemanha Ocidental, Japão e União Soviética. Desde que Washington conseguisse manter a proporção de 4x1 contra Moscou, os Estados Unidos venceriam a Guerra Fria.

Kennan insistiu que o país mantivesse um olhar atento sobre esses centros de poder. “Precisamos decidir que áreas são chave e as que não são, quais temos de controlar com toda nossa força e quais podemos ceder taticamente”, afirmou.

Contrariamente, Washington acabou intervindo em lugares distantes ao redor do mundo para impedir que comunistas conquistassem o poder. Este foi um exercício inútil e resultou em danos autoinfligidos ao país. A estratégia tem de ter como base os interesses e não uma resposta precipitada a toda e qualquer ameaça.

Ceticismo. Henry Kissinger, um realista como Kennan, tinha sido um cético em relação à Guerra do Vietnã como acadêmico. Como membro do governo Richard Nixon apoiou vigorosamente a continuação da guerra enquanto negociava a saída das tropas americanas. Mas em suas conversas privadas com Nixon, revelou que não acreditava na lógica que havia orientado a intervenção americana. Não era realmente importante se o Vietnã do Sul caísse, disse a Nixon, desde que isso ocorresse “um ano ou dois” após a partida dos soldados dos Estados Unidos, assim a sociedade americana não daria a mínima importância. O Vietnã do Sul caiu e isso causou uma tragédia humanitária, mas no longo prazo não prejudicou os Estados Unidos. Apenas alguns dominós sem importância se renderam ao comunismo na Ásia, e dez anos após a queda de Saigon o governo Ronald Reagan estava negociando, assumindo uma posição de força, com a União Soviética. Em 1989 o Muro de Berlim caiu.

Naturalmente, uma razão chave do colapso do império de Moscou foi sua intervenção no Afeganistão, que exauriu a União Soviética e debilitou sua determinação. Os russos se envolveram por razões familiares: uma insurgência, divisões internas, temor da instabilidade. Moscou deveria ter prestado atenção ao sábio conselho de George Kennan na época, como devemos fazer agora. / Tradução de Terezinha Martino

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