Correio Braziliense, n. 21539, 07/03/2022. Mundo, p. 4

“É preciso cessar o conflito"

Entrevista: Luiz Fernando Godinho


Em 11 dias de guerra entre Rússia e Ucrânia, o conflito deixou mais de 1,5 milhão pessoas refugiadas. De acordo com o porta-voz do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados no Brasil (Acnur), Luiz Fernando Godinho, se o cessar-fogo não acontecer logo, o número de refugiados aumentará. “É preciso cessar o conflito, preservar as vidas humanas, a infraestrutura civil, para que as pessoas tenham condições e segurança para retornarem ao país. Se não for suspenso o conflito, o fluxo vai continuar e o número de pessoas necessitando de ajuda dentro da Ucrânia vai aumentar”, ressaltou. 

O país passou a ter conflitos com o Kremlin em 2014, após o então presidente ucraniano e pró-russo, Viktor Yanukovych, ser deposto. O território da Crimeia — um dos principais alvos dos bombardeios russos — foi invadido por militares de Vladimir Putin com a justificativa de impedir que o estado se aliasse à União Europeia. Nessa disputa, uma série de fatos corroborou para o conflito emergir em uma guerra. Primeiro, o Parlamento da Crimeia elegeu um premiê pró-Moscou e votou pela independência. Em 16 de março de 2014, os líderes organizaram um referendo para civis escolherem se deveriam tornar-se uma república autônoma ao se unir à Rússia. A própria Ucrânia, Estados Unidos e Reino Unido consideraram o ato ilegal. O conflito se intensificou e os primeiros refugiados ucranianos passaram a aparecer.

Antes da crise recente, eram 5 mil pessoas refugiadas, 36 mil apátridas — pessoas que não têm a nacionalidade reconhecida por nenhum país —, e 854 mil deslocados internos, que eram auxiliados pelos seis escritórios do Acnur distribuídos no território. Agora, a agência tem trabalhado um novo plano tático, cuja negociação para o acolhimento em países vizinhos é um dos principais pontos. Além disso, Godinho informou que os problemas de discriminação nas fronteiras têm sido monitorados. Sobre a portaria interministerial para o Brasil oferecer vistos humanitários, apesar de não ter havido consulta técnica ao Acnur, ele afirmou que a iniciativa contemplou todos os perfis auxiliados pela agência, principalmente os apátridas. Confira a entrevista exclusiva ao Correio.  

Havia um plano de resposta humanitária para a Ucrânia desde 2014. O utilizado agora é o mesmo?

Havia um plano de resposta para essa situação, em andamento desde o início do ano, de US$ 190 milhões. Com o início do conflito, refizemos o plano e substituímos o anterior, inicialmente para dois ou três meses e, depois, faremos uma nova análise. Ele virou (um plano) de US$ 1,1 bilhão para dentro da Ucrânia e de US$ 550 milhões para os países que estão recebendo refugiados. Ao todo, o plano é de aproximadamente US$ 1,7 bilhão. As estimativas são de que existam quatro milhões de pessoas fora e 12 milhões de pessoas no país.

Como ocorre a atuação da agência na Ucrânia e nos países próximos, que recebem os refugiados?

Para fora, há a resposta regional para refugiados com a coordenação do Acnur em parceria com mais 12 agências, incluindo outras agências sócias da ONU, ONGs e a sociedade civil. O período do plano é de seis meses. A ideia é trabalhar na identificação das necessidades dos refugiados, destacando as necessidades específicas de gênero, idade, por exemplo, e mais particularmente para mulheres e crianças, que têm sido o perfil majoritário das acolhidas. Para a situação de dentro da Ucrânia é diferente. Apesar das necessidades serem as mesmas, o volume das pessoas justifica os valores maiores. As ações são direcionadas para educação, saúde alimentar, saúde, higiene, mas a coordenação é de outras agências que participam dentro.

E na Europa, como atuam na realocação das pessoas recém-saídas da Ucrânia?

Em um primeiro momento, a preocupação é assegurar o acolhimento das pessoas quando cruzam as fronteiras. Dialogamos diretamente com os governos dos países vizinhos para fortalecer a chegada, atuamos no manejo dos abrigos e na distribuição de itens não alimentares, como cobertores, colchonetes, kits de cozinha e série de questões que precisam ser feitas dentro dos abrigos. Também estamos fazendo o mapeamento das necessidades específicas para dar as respostas.

Há notícias de discriminação nas fronteiras. Como vocês lidam com essa situação?

O Acnur confirma as informações, recebemos os informes e temos feito lobbys com os países para que não haja esse tipo de barreiras. O trabalho humanitário deve ser imparcial e neutro, nesse sentido, temos atuado para que não tenha nenhum tipo de discriminação pela origem e grupos étnicos, para que (todos) possam cruzar as fronteiras e ter acesso aos serviços. O controle migratório é feito pelos países, e é muito difícil entrar nessa discussão, porque são controles feitos pelas autoridades. Se insistirmos, entraremos até na soberania dos países. Estamos com a campanha de arrecadação de recursos no site, tem uma página dedicada à arrecadação de fundos. Em um momento como esse, a melhor forma de ajuda é a financeira.

A agência foi consultada sobre a emissão de vistos humanitários por parte do Brasil? 

O Acnur parabenizou o governo brasileiro pela portaria interministerial. A gente tem um contato direto com as autoridades brasileiras, mas não houve uma consulta técnica ao Acnur. No entanto, vemos de forma positiva a ação. Afirma o compromisso do Brasil com a proteção internacional de pessoas afetadas por guerras e conflitos. Tem uma questão interessante nessa situação: a portaria beneficia a população apátrida — que é considerável na Ucrânia. Esse perfil não tem os documentos básicos, então, se tem um visto humanitário para chegar em outro país, já é um excelente sinal para sair de onde está. Uma vez com o visto, o governo brasileiro consegue garantir a nacionalidade brasileira, por meio da lei do refúgio e da lei de migração.

Como estão as ações da agência junto aos governos para conseguir o cessar-fogo?

Existe o movimento. Não entramos na discussão política, porque precisamos manter imparcialidade e neutralidade entre os dois países envolvidos no conflito. Mas o representante do Acnur, nas últimas reuniões da ONU, principalmente no Conselho de Segurança, tem se posicionado e fez um discurso pedindo o encerramento do conflito.