Correio Braziliense, n. 21542, 10/03/2022. Mundo, p. 8

Ataque a maternidade ofusca diplomacia

Rodrigo Craveiro


A poucas horas do primeiro encontro de alto nível entre autoridades de Kiev e de Moscou, a Ucrânia acusou a Rússia de bombardear o Complexo Médico Territorial para a Saúde de Crianças e de Mulheres, um hospital pediátrico e maternidade situado em Mariupol (sudeste). “Ataque direto das tropas russas a uma maternidade. Pessoas, crianças estão sob os escombros. Atrocidade! Por quanto tempo o mundo será cúmplice, ao ignorar o terror? Fechem os céus agora! Parem com os assassinatos! Vocês têm o poder, mas parecem perder a humanidade”, escreveu o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que chamou o incidente de “crime de guerra” e de “prova de genocídio”. A comunidade internacional condenou, de forma unânime, o bombardeio atribuído a Moscou. Até o fechamento desta edição, Pavlo Kirilenko, líder da região sul de Donetsk, confirmou 17 adultos feridos, incluindo funcionários do hospital de Mariupol.

A porta-voz do Ministério russo das Relações Exteriores, Maria Zakharova, não negou o ataque, mas admitiu que “batalhões nacionalistas” ucranianos tinham montado no local posições de tiro e retirado pacientes e funcionários. Zakharova também anunciou progressos em mais um diálogo entre negociadores das duas partes e sinalizou com uma moderação do Kremlin. “Os objetivos da Rússia não incluem a ocupação da Ucrânia, a destruição de seu Estado ou a derrubada do governo atual”, assegurou. As declarações da representante da chancelaria de Moscou foram recebidas  com ceticismo. Hoje, os ministros das Relações Exteriores Serguei Lavrov (Rússia) e Dmytro Kuleba (Ucrânia) se reunirão em Antália, um balneário do Mar Mediterrâneo, no sul da Turquia. O homólogo turco Mevlut Cavusoglu será o mediador do diálogo. O presidente russo, Vladimir Putin, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, conversaram por telefone sobre “opções para esforços políticos e diplomáticos”.

Apesar de Zakharova afirmar que a “operação especial” não tem como alvo os moradores, a prefeitura de Mariupol anunciou que, desde o início do cerco à localidade, em 1º de março, 1.207 civis morreram  somente na cidade. “Nove dias de genocídio da população civil”, denunciou a nota. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha classificou a situação em Mariupol como “apocalíptica”. O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, chamou o ataque de “imoral”. Por sua vez, a ONU pediu “o fim imediato dos ataques a instalações de saúde, hospitais, profissionais de saúde e ambulâncias”. O Vaticano, por meio do secretário de Estado e cardeal Pietro Parolin, disse que o bombardeio a um hospital é “inaceitável”. “Não há razões, não há motivações para fazer isso.”

Fuga

Vira Protskykh, ex-gerente de comunicação em projetos sociais e atualmente desempregada, abandonou Mariupol e fugiu para Rivne, próximo à fronteira com Belarus. Deixou pais e amigos na cidade portuária. “Conversei com minha mãe, pela última vez, em 2 de março. Ela contou que minha escola e vários jardins foram bombardeados. Meu pai trabalha como motorista de ambulância e viu feridos e mortos. No início da guerra, uma granada caiu a 100m dele”, relatou ao Correio. Uma amiga dela disse que precisou dormir, com a mãe, no corredor de casa, ante os bombardeios incessantes. “Elas viram cadáveres abandonados nas ruas. As pessoas têm cozinhado alimentos em churrasqueiras diante de suas casas, pois não têm mais gás, água e eletricidade.”  

Em 24 de fevereiro, Yuliya Sarbash, 39 anos, também escapou de Mariupol com a família e se instalou em Berehove (oeste), na fronteira com a Hungria. “Os russos bombardearam, hoje (ontem), o hospital e uma área residencial da minha cidade natal. As pessoas de lá me contaram que houve vários ataques aéreos nesta quarta-feira. Vi várias fotos de gestantes feridas sendo carregadas para fora do prédio destruído”, afirmou, por telefone, a proprietária de uma agência de relacionamentos. “Mariupol está bloqueada, isolada. As pessoas estão sem eletricidade, sem aquecimento e sem água. As lojas não têm mais produtos alimentícios. Os bombardeios se tornaram muito intensos nesta semana”, acrescentou.

Ceticismo

Olexiy Haran, professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla (Ucrânia), desqualificou a suposta moderação na retórica do Kremlin. “Se Putin não deseja ocupar a Ucrânia e depor Zelensky, não teria motivos para atacar o país. É uma questão muito simples.Não devemos acreditar em uma palavra sequer dos russos. Antes da invasão, o próprio Putin disse que não atacaria o meu país. Os russos falaram em uma operação especial na região de Donbass. Eles estão bombardeando toda a Ucrânia”, afirmou ao Correio, por telefone. “Eles disseram que não matariam civis, estão praticando assassinatos. Eles disseram que não haveria reservistas entre os invasores. Hoje (ontem), uma declaração do comando do Exército russo afirmou que alguns reservistas entraram na Ucrânia e foram capturados.” Haran aposta que os russos preparam uma incursão em Kiev. “Precisamos ficar fortes e juntos, e os Estados Unidos e a Europa devem impor mais sanções a Moscou”, pediu.  

Também no campo diplomático, um dia depois de os Estados Unidos cortarem a importação do petróleo russo, o Reino Unido instou o G-7 — grupo dos sete países mais industrializados do mundo — a “pôr fim ao uso de petróleo e gás russos”. “Putin deve fracassar”, declarou a ministra britânica das Relações Exteriores, Liz Truss, durante visita aos Estados Unidos. “Em nossa resposta” à invasão russa da Ucrânia, “devemos redobrar nossas sanções.” Ela não descartou a “desconexão” dos bancos russos do Swift, sistema internacional que permite a padronização de informações financeiras e transferências de recursos entre bancos ao redor do mundo.

1.207
Número de civis de Mariupol mortos pelos bombardeios russos, de acordo com a prefeitura da cidade.

2,1 milhões
Total de refugiados que fugiram da guerra da Ucrânia, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur)