Título: Crise inibe os sete pecados
Autor: Márcio Mará
Fonte: Jornal do Brasil, 11/09/2005, País, p. A2

Há muito Brasília não vivia desilusão tão grande como a proporcionada pelas denúncias do mensalão do governo Lula. O ar de desesperança invadiu a capital da República da Catedral ao Lago Paranoá. Baixou a crista do povo que acreditou em mudanças e reduziu também a vaidade dos políticos envolvidos no escândalo. A vergonha é tão grande que o maior de todos os pecados do atual governo afetou os sete pecados capitais do poder. A doutrina dos vícios imperdoáveis do homem na sua existência, tão estudada por São Tomás de Aquino e abordada por Dante Alighieri em A divina comédia, encontrou em pouco tempo nos parlamentares da estrelinha vermelha e aliados fiéis representantes. Os políticos italianos que Dante encontrou no purgatório poderiam ser muito bem os que volteiam por Brasília. O pecado original, o da propina, levou, vejam só, a turma de Roberto Jefferson, José Dirceu & Cia. a dar um freio na soberba, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e preguiça. Esse grupo parece ter começado a percorrer o Purgatório da obra-prima de Dante, passando pelos sete círculos dos pecados capitais em busca do perdão. E sob CPIs e acusações de todos os lados, ficou difícil manter a euforia com o poder. Antes os acusados lambuzavam-se como crianças comendo doce, perdendo a noção do exagero. Agora, encabulados com as denúncias, deixaram de lado o nariz empinado. A empáfia deu lugar aos constantes apertos de mão em troca de acordos com gente há pouco tempo combatida com discurso às vezes beirando o ódio e o destemor.

O cofre tantas vezes fechado se abriu para facilitar acordos. Afinal, a situação não é nem um pouco invejável. Para mudar a imagem e aumentar os lobbies, o fim de semana prolongado diminuiu: segunda e sexta-feiras passaram a ter mais assiduidade dos representantes do povo no Congresso, ainda que longe do ideal.

Os antes opositores desprezados tornaram-se aliados e amigos de fé. Para completar, Suas Excelências escondem-se dos refinados restaurantes, fogem das caríssimas butiques, dos shopping centers, dos encontros amorosos proibidos. Os carros importados comprados durante a gestão de Lula não deixam as garagens.

¿ Curioso é que no ano que vem tem eleição, todos precisarão voltar às ruas para fazer campanha. Como vão agir? ¿ pergunta com ironia o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ). O ex-petista, agora ferrenho opositor das práticas que aproximaram o partido da esperança dos vícios capitais do poder, comunga da mesma decepção e vergonha expressa por um simples recepcionista de hotel.

¿ Teve hóspede que chegou aqui e, brincando, pediu apartamento com vista para o mar... de lama. Não deixa de ser triste para nós, espero que tudo passe logo ¿ revela, sem muita literatura, a divina comédia brasileira de Brasília. Afinal, a montanha de Dante do Purgatório para remissão dos pecados pode, quiçá um dia, ser o Planalto Central.

Gula

O estresse das denúncias do mensalão mexeu com o paladar dos políticos envolvidos na crise. Até a gula diminuiu. Boa comida, bom vinho, bons restaurantes, e pontos de encontro dos tempos de Lula-lá andam meio vazios na capital. A hora é de pôr um freio nas extravagâncias e conter-se à mesa. Um dos restaurantes que mais sentiram o impacto das denúncias foi o Piantella. Favorito do ex-ministro José Dirceu e de outros envolvidos no escândalo, como o deputado João Paulo Cunha (PT-SP), um dos 18 acusados de receber propinas do publicitário Marcos Valério que corre o risco de ter o mandato cassado pela Comissão de Ética depois de listados pelas CPIs dos Correios e do Mensalão.

¿ Há muito tempo não aparecem. Desde as denúncias, o movimento caiu 30%. E não só no Piantella. Está todo mundo reclamando ¿ conta o maître Chico, das figuras mais conhecidas da capital.

Dirceu e boa parte da cúpula petista eram presença certa no endereço gastronômico. Amigo de Kakai, um dos donos do restaurante, degustava da feijoada à boa carne. O vinho era francês. Outros petistas preferiam o Feitiço Mineiro, mais caseiro. O entorno do restaurante está bem diferente dos tempos em que encontrar vaga no estacionamento em frente era impossível.

¿ O movimento caiu demais. Por causa do mensalão, os petistas sumiram ¿ comenta o garçom desavisado. O gerente Raimundo Neto, com a banda tocando para poucos clientes, ensaia outro discurso.

¿ O movimento é o mesmo. Aqui não é reduto só de PT.

Preguiça

Trabalhar nunca foi o forte dos parlamentares em Brasília. Normalmente, a semana começa na terça-feira e termina na quinta. Segunda e sexta-feiras são emendadas com o sábado e o domingo. Pois bem. Há quem garanta que as denúncias de propina já começam a deixar os políticos mais atuantes. Até a preguiça diminui quando a corda quer arrebentar e é necessário estar presente para fazer mais lobby, mostrar trabalho e vender seriedade.

¿ Pelo que tenho olhado aqui, o movimento cresceu, sim, principalmente na segunda-feira. Sexta-feira um pouco menos, né? Aí já é querer demais ¿ observa um dos taxistas que fazem ponto na Chapelaria do Congresso. O colega que logo atrás espera uma boa corrida concorda e ainda solta a piada.

¿ Esse povo precisa trabalhar mais mesmo. Eu dou um duro danado todo dia, eles só têm quatro por semana, com direito a mensalão e tudo. Quem não aumentou a freqüência na Câmara anda, sem dúvida, mais colado nos telefones. Nem todos os parlamentares ampliaram as viagens a Brasília, Preferem trabalhar nos escritórios dos estados.

Se os taxistas comemoram as corridas, na barbearia do Senado o movimento decaiu e o dono anda de cabelo em pé.

¿ Desde o mensalão, diminuiu 60%. Ninguém pára mais aqui. Só o senador Pedro Simon ¿ contou um dos funcionários.

Inveja

A inveja é o único pecado capital que o mensalão inibiu no sentido inverso. Ou seja: os outros partidos invejam menos o PT no governo do que antes. Melhor dizendo, não há partido político no momento que gostaria de estar na situação do PT. O sonho dourado de chegar ao poder acabou se tornando um pesadelo diante de tantas denúncias de escândalos, uma relação que não pára de aumentar.

¿ É sem dúvida uma situação muito delicada. Ano que vem todos terão de ir às ruas para fazer campanha. Como vão fazer? Correm o risco de repetir o que houve na Argentina. Quando um político acusado de corrupção entrava num restaurante, batiam os talheres na mesa ¿ compara o deputado Fernando Gabeira (PV), que se elegeu pelo PT mas saiu por discordar dos rumos do partido. Não há quem não considere difícil a situação para as próximas eleições. Como o sub-relator da CPI dos Correios, o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR), para quem houve perda da ¿mística¿.

¿ Na verdade, nenhum partido político gostaria de passar por isso. O que aconteceu com o PT comparo com a Operação Mãos Limpas, na Itália, nos anos 80. Foi a maior crise de credibilidade. Os 25 anos construídos foram jogados fora. É diferente do caso do governo Collor. Ele é que foi atingido, e não o partido, que não existia.

Ira

O discurso petista sempre foi considerado dos mais radicais. Essa foi a marca registrada por quase toda a existência na oposição. Bastou chegar ao poder, no entanto, para o governo Lula iniciar um processo de maior diálogo. Ninguém enrusbeceu ao dar as mãos ao adversário de outros tempos. Especialmente depois do mensalão.

Vale tudo, até negociar com o baixo clero em troca de proteção. Durante a semana, inclusive, ensaiaram o apoio à permanência de Severino Cavalcanti na presidência da Câmara ¿ diminuído, obviamente, depois das quase evidentes denúncias de recebimento de propina de R$ 110 mil para manter contrato com o restaurante Fiorella.

¿ O exemplo mais emblemático do desespero do PT foi o pedido de perdão do José Dirceu ao Eduardo Jorge ¿ salienta o sub-relator da CPI dos Correios, Gustavo Fruet (PSDB-PR).

Então ministro chefe da Secretaria Geral da Casa Civil do governo Fernando Henrique, Eduardo Jorge Caldas Pereira foi atacado publicamente por Lula e Dirceu, que o execravam. Agora, o ex-ministro da Casa Civil, durante depoimento na Comissão de Ética na Câmara, confessou-se arrependido pelas acusações sem provas no ano de 2000.

¿ Desde o início do governo está tudo errado. O PT se aliou ao Sarney e ao Maluf, dois dos seus maiores opositores. E o Lula dizia que dava cheque em branco para o Roberto Jefferson ¿ enumera Fruet.

Luxúria

Não há pecado capital mais sigiloso, guardado a sete chaves, do que o da luxúria. Apesar da máxima de que o poder anda sempre junto com o sexo e o amor, a situação fica delicada para os parlamentares, muitos deles casados, que passam a semana solitários e resolvem se divertir em Brasília. Até no quesito, o mensalão provocou um efeito avassalador: a clientela VIP quase desapareceu das festinhas e os encontros amorosos agendados por telefone ou pelos recepcionistas dos hotéis reduziram significativamente.

¿ Realmente, depois das denúncias o movimento caiu bastante, nunca mais foi o mesmo. O pub perto daqui tem ficado sempre vazio ¿ afirmou o recepcionista de um hotel do Setor Hoteleiro Sul, avisando que o local já estava fechado ¿ e não eram nem 23 horas. Uma das últimas garotas de programa a sair do pub deixou escapar certo desânimo.

¿ Pior que não foram só os políticos, a situação geral é essa. Parece que todos se encolheram com a história do escândalo. No que depender do hotel, vai encolher mais ainda, revela o recepcionista sem pedir segredo.

¿ O dono daqui está doido para que o pub feche logo. É uma vizinhança ruim, acaba queimando o filme geral ¿ conta, reconhecendo que políticos e clientes requisitavam meninas para passar a noite.

Há outras opções de pubs na capital federal. Mas a maioria dos políticos prefere telefonar para a grande agenciadora de garotas de programa. Jeany Mary Corner tem uma agenda vastíssima que virou objeto de desejo. A cafetina, que agencia encontros para muita gente poderosa a partir de R$ 2.000, tem a confiança cega de muitos clientes, que chegam a pagar com cheques. Investigada pela Polícia Civil do Distrito Federal, Jeany Mary Corner, com o sigilo telefônico quebrado, pode mudar o destino das CPIs. Por isso, a empresária do sexo, que teria gravado algumas conversas com clientes, anda se resguardando e até cobrando cachê para dar entrevistas desde que passou a ocupar os espaços na mídia.

Recentemente, Jeany Mary Corner teria intermediado encontro de conhecida modelo de televisão com um influente político de Brasília por R$ 35 mil. Agora, no entanto, o trabalho anda reduzido, até a poeira baixar. As conseqüências para os homens de Brasília podem sair muito mais caras.

Soberba

José Dirceu caminhando como um poderoso chefão, cabeça sempre erguida, cercado dos comandados, e com os súditos a procurá-lo sem resposta. Essa foi uma cena muito comum em Brasília depois que Lula assumiu a Presidência e antes do escândalo da propina. Talvez seja esse o exemplo clássico da soberba, um dos maiores pecados capitais cometidos pelo atual governo. Mas depois das denúncias desencadeadas pelo ex-aliado Roberto Jefferson e as CPIs, tudo mudou. O ex-ministro-chefe da Casa Civil calçou as sandálias da humildade.

¿ Era procurado como Deus, e deixava parlamentares horas na espera. Agora, é ele quem caça os deputados até para dar aperto de mão. Nunca poderia imaginar que voltaria a precisar deles depois de se tornar ministro e ganhar poder ¿ comenta um dos deputados que costuma aguardar a hora da audiência. Como não sabe o dia de amanhã, pediu para não ser identificado. Ao depor no Conselho de Ética da Câmara, após rebater a acusação do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) de ser prepotente e autoritário, o deputadoJosé Dirceu ainda ouviu da deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP) que ¿nasceu arrogante¿.

¿ A senhora me respeite. Não achava isso quando estava na faculdade comigo, na PUC, e era minha amiga! ¿ redarguiu, citando os tempos combativos da esquerda. Tempos que hoje deram lugar ao lado burguês. Não só o ex-todo-poderoso José Dirceu, mas outros acusados de envolvimento na propina mudaram rapidamente de estilo de vida. Um dos maiores exemplos de ostentação foi a troca de populares Palios pelos superpotentes importados Land Rovers e Audis.

¿ Depois das denúncias foram todos para a garagem. As mulheres pararam de ir às butiques comprar roupas de grifes e freqüentam menos salões de beleza. Estão mais recolhidos ¿ observa um outro político.

Num dos endereços mais requisitados da moda brasiliense, a Magrella, espécie de Daslu da capital da República, é enorme o cuidado das vendedoras e da proprietária, a empresária Cleuza Ferreira, em proteger os clientes ¿ havia barreiras até para fotografar sonhos de consumo, como vestidos de até R$ 20 mil e lustres de R$ 120 mil a R$ 160 mil.

¿ Aqui quem compra mais é mulher de empresário e até artista. Mulher de político não mora em Brasília e se está aqui, não compra na cidade ¿ assegura uma das simpáticas atendentes.

Melhor do que no Helio Coiffeur, o templo da beleza na capital federal. Uma reunião de horas que custou duas visitas ao salão de beleza impediu qualquer funcionário de falar. Proteger o cliente é fundamental, seja qual for.

Avareza

Conhecido como autêntico mão fechada em matéria de gastos, o atual governo com base petista mudou de filosofia após as denúncias das propinas sob investigação das CPIs. A pouco mais de um ano das eleições, os aliados políticos estão esfregando as mãos na esperança de verem verbas antes impossíveis saírem com data bastante antecipada, a tempo de ajudá-los nos palanques para a reeleição. As famosas emendas parlamentares deverão começar a transitar com mais agilidade. Isso porque só podem sair a no máximo quatro meses das eleições ¿ ou seja, até 2 de junho.

¿ No DNA do PT sempre houve fisiologia e clientelismo para obter vantagens. Isso não é de hoje ¿ explica o deputado Onix Lorenzoni (PFL-RS). O parlamentar lembra que, para tentar retirar assinaturas de deputados favoráveis à criação da CPI dos Correios, aumentou o volume de liberação de emendas.

¿ Até o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que não costumava agir diretamente, acabou entrando em campo para interferir. Eles conseguiram retirar 30 assinaturas em troca de favores. Lembro bem que ficamos até meia-noite e meia monitorando para conseguir repor as perdas que tivemos.

Onix Lorenzoni comenta que houve até briga do PT com os parlamentares à esquerda, que se recusavam a ceder, e o governo adotou a mesma tática para aprovar a reforma da Previdência e a medida provisória que aumentou os impostos.