O Estado de São Paulo, n. 46685, 12/08/2021. Política p.A8

 

Câmara barra 'distritão' , mas resgata coligações

 

Camila Turtelli

André Shalders

Em votação a jato, a Câmara aprovou ontem o texto-base da proposta de emenda à Constituição (PEC) com uma nova reforma eleitoral. A principal mudança traz de volta as coligações entre partidos, extintas em 2017, nas eleições para deputados e vereadores. O “distritão”, que até então era o mote da proposta, foi derrotado após um acordo com os partidos de oposição.

Se a mudança for confirmada pelo Senado, as eleições municipais de 2020 terão sido as únicas realizadas sem as coligações proporcionais. A reforma aprovada pela Câmara atende ao interesse dos pequenos partidos e deverá frear a queda na fragmentação do sistema político ao permitir que o País continue tendo um grande número de siglas com representação no Congresso.

Sob a relatoria da deputada Renata Abreu (Podemos-SP, a proposta entrou na pauta da Câmara de forma repentina, por decisão do presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL). Foi aprovada em primeiro turno por um placar de 339 votos a 123. Depois desta votação, os deputados passaram a apreciar destaques ao texto, excluindo ou mantendo partes separadas.

O texto ainda terá de ser votado em segundo turno na Câmara antes de seguir para o Senado, onde também precisará ser apreciado em duas votações para virar regra.

Para ter validade para as próximas eleições, a reforma capitaneada por Renata Abreu precisa passar por todas as etapas e ser promulgada até outubro. Hoje, a Casa também deve votar a proposta da federação de partidos – o que permite que legendas pequenas e com fraco desempenho eleitoral se juntem para escapar da cláusula de barreira.

A PEC permite a retomada das coligações para eleições proporcionais já a partir do ano que vem, quando serão eleitos deputados estaduais e federais. Elas foram extintas em 2017, por meio de emenda constitucional. A disputa de 2020 foi a primeira – e única – na qual os vereadores não puderam concorrer por meio de coligações.

Numa coligação, a quantidade de votos de cada um dos candidatos de um mesmo grupo de legendas é somada e dividida pelo quociente eleitoral (relação entre o número de votos válidos e o número de vagas). O resultado é o total de vagas daquela coligação, e os mais votados dentro do grupo são eleitos. Essa união não precisa ser replicada em âmbito federal, estadual ou municipal.

O fim das coligações prejudica os partidos pequenos, uma vez que estas legendas muitas vezes não conseguem indicar, sozinhas, o número máximo de candidatos possíveis para os cargos proporcionais num determinado Estado. Isto significa que há menos gente fazendo campanha e o “bolo” de votos tende a ser menor, resultando em menos vagas.

 

‘Mal menor’. “Optamos pelo mal menor, que entendemos que é o retorno das coligações”, afirmou o líder da oposição, Alessandro Molon (PSB-RJ). O acordo para remover o distritão partiu de deputados do PT, segundo apurou o Estadão.

“É menos ruim para o País a volta da coligação do que o distritão que é um golpe na nossa democracia”, afirmou o presidente do MDB, deputado Baleia Rossi (SP).

Lira interrompeu a votação de uma medida provisória sobre manutenção de empregos para colocar a PEC em votação, após se reunir com líderes da base e com Renata Abreu. A mudança na pauta do dia gerou reclamações.

 

_______________________________________________________________________________________________________________________

 

Centrão se divide no apoio à PEC do voto impresso

 

Vinícius Valfré

Lauriberto Pompeu

 

Aliado de Jair Bolsonaro, o Centrão não aderiu por completo à PEC do voto impresso e ajudou a impor, anteontem, a maior derrota política do presidente desde o início do mandato. Seis partidos identificados como componentes do bloco deram 69 votos a favor do texto, mas deixaram de dar 73 apoios. A conta leva em consideração 46 votos contrários à PEC dados por deputados de Progressistas, PL, PTB, Republicanos, Avante e PROS e 27 ausências.

Para que o texto fosse aprovado, o governo precisava do apoio de, no mínimo, 308 deputados, mas só obteve 229 votos favoráveis. O comportamento do Progressistas foi emblemático na votação. Controlado pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, o partido ainda tem entre seus filiados o presidente da Câmara, Arthur Lira (AL), que chegou ao cargo com apoio do Planalto, e o deputado Ricardo Barros (PR), líder do governo.

Líder do Progressistas na Câmara, Cacá Leão (BA) liberou a bancada para votar como quisesse. Ao todo, 16 deputados foram a favor da proposta, 13 contrários e 11 não votaram. No PL – que detém o comando da Secretaria de Governo, foram 23 deputados contrários à PEC, 11 favoráveis e sete ausências.

Um dia após sofrer a derrota na Câmara, Bolsonaro voltou a colocar em xeque a segurança das eleições de 2022. "Hoje em dia sinalizamos para uma eleição, não que está dividida, mas que não vai se confiar nos resultados da apuração", disse o presidente a apoiadores, ontem, na saída do Palácio da Alvorada.

 

_______________________________________________________________________________________________________________________

 

Três derrotas na mesma terça-feira

 

ANÁLISE: Eliane Cantanhêde

 

O presidente Jair Bolsonaro sofreu três derrotas relevantes anteontem, e a principal delas foi a decisão do plenário da Câmara de “enterrar definitivamente”, como disse o presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que recriaria o voto impresso no Brasil. Esta era – ou é? – não apenas a principal bandeira, mas a atual obsessão de Bolsonaro.

As duas outras derrotas: a Lei de Segurança Nacional (LSN) foi derrubada no Senado e a convocação de blindados militares para desfilar na Praça dos Três Poderes e na Esplanada dos Ministérios foi um fiasco, pelo espetáculo, pelas autoridades que participaram e pelo público que assistia. Em vez de ajudar, pode ter piorado as chances de aprovação do voto impresso na Câmara.

Se lhe serve de consolo, o presidente tem a favor dele o placar da votação do voto impresso na Câmara. A proposta perdeu porque não atingiu os 308 votos necessários para aprovar emendas constitucionais nem os 257 de maioria absoluta, mas teve mais votos favoráveis (229) do que contrários (218). Arthur Lira, que conversou com ele antes da votação, anunciou que Bolsonaro acataria o resultado, qualquer que fosse ele. Mas, com Bolsonaro, nunca se sabe.

O fato é que o placar dá a chance ao presidente de manter o discurso e o ataque à urna eletrônica, ao TSE e a ministros do Supremo, atiçando suas bases na internet, tirando o foco da pandemia, da CPI da Covid e da crise social e insistindo que ele tem razão e tem maioria. Apesar de, na realidade, ter usado todos os recursos à sua disposição e, mesmo assim, jamais ter comprovado uma única fraude sequer do sistema eleitoral brasileiro.

A urna eletrônica, aliás, foi criada em 1996 e até hoje passou ilesa nesse quesito: jamais houve uma acusação séria e com provas de fraudes nos resultados e, além de Bolsonaro, todos os atuais 513 deputados e 81 senadores foram eleitos justamente por esse sistema. E, como lembraram durante a votação, nunca reclamaram.

A segunda derrota de Bolsonaro também foi importante. O Senado derrubou à tarde a famigerada Lei de Segurança Nacional, um instrumento que foi criado e bastante usado na ditadura militar contra os opositores do regime, mas vinha sendo utilizado pelo governo Bolsonaro e até pelo ministro do Supremo Alexandre de Moraes.

E a terceira derrota é recheada de simbolismo: o presidente da República e o ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, deram um tiro no pé ou melhor, um tiro n’água, já que se trata da Marinha – ao promoverem um desfile de blindados e equipamentos militares na Praça dos Três

Poderes e na Esplanada dos Ministérios, justamente no dia da votação do voto impresso. O resultado está nas redes sociais e até na mídia internacional: o desfile virou motivo de chacota.

Além disso, Bolsonaro assistiu a ele cercado de militares e um ou outro ministro ou líder do Centrão, como o ministro Ciro Nogueira, da Casa Civil, e o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, que vai depor hoje na CPI da Covid no Senado, mas nenhum dos seus convidados do Judiciário e do Legislativo compareceu.

A foto da cerimônia e as manifestações na Câmara e no Senado mostram isolamento, não força, liderança e capacidade de união do presidente. E, se a intenção era amedrontar deputados, senadores e ministros, definitivamente não foi isso que aconteceu.