Título: Katrina recicla traumas do 11/9
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 11/09/2005, Internacional, p. A12

Os Estados Unidos relembram hoje um dos maiores traumas de sua história ¿ os atentados contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e ao Pentágono, em Washington ¿ em meio a outro. O furacão Katrina, que varreu o Golfo do México, deixou claro que a imagem vendida ao mundo pela superpotência não é permitida a grande parte de seus próprios cidadãos. A tragédia foi capaz de criar, entre americanos, humilhações sociais tidas como impensáveis. Se o 11 de setembro de 2001 fez despertar um sentimento de unidade nacional, o furacão dividiu a sociedade e escancarou o abismo entre negros e brancos, pobres e ricos na maior economia do mundo. Além da suspeita demora em responder às demandas urgentes da população desabrigada, ao contrário do que aconteceu em Nova York, o governo foi acusado de negligenciar a situação de pobreza em que viviam as vítimas ¿ em sua maioria negras ¿ até mesmo pelo ex-secretário de Estado Colin Powell, que destacou a dificuldade dessas pessoas em desocupar a cidade. O racismo ganhou rostos em histórias de abandono e negligência que revoltaram o país.

O modelo de democracia a que recorreu George Bush há quatro anos para justificar invasões no Afeganistão e no Iraque ¿ sem o aval das Nações Unidas ¿ se era frágil na casca, mostrou-se ineficiente no conteúdo. O rastro do Katrina evidenciou uma sociedade nada unida como a que apoiou a guerra contra o terror. Pelo contrário, americanos presenciaram cenas de horror, que vão desde a morte de idosos por fome e sede em plena rua, corpos boiando em uma inundada Nova Orleans ao abuso da ausência do Estado, possibilitando saques, roubos, estupros e assassinatos. A crise chegou a ser equiparada às mazelas do antigo conceito de Terceiro Mundo.

¿ O furacão expôs a fragilidade das políticas neoliberais, responsáveis pelo desmonte do Estado do Bem-Estar Social ¿ afirma Michael Hardt, co-autor de Império, em entrevista ao JB. ¿ Ficou claro que esse modelo cria condições para tragédias até mesmo nos EUA. Pobreza não é só não ter comida na mesa. É também estar abandonado numa emergência ¿ completou.

Para Hardt, o momento é de auto-reflexão:

¿ O poder está sendo revisto. A segurança interna é questionada. Se no 11/9 o inimigo era externo, no episódio atual, pode-se desconfiar do próprio modelo político.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos concorda:

¿ A fraqueza surpreendeu o país tanto num acontecimento político como num desastre natural. Isso não era esperado porque a posição dos EUA no mundo é de eficiência ¿ avaliou, de Wisconsin. ¿ Causa estranheza à sociedade que um país que pretende sanar problemas externos não consiga resolver os seus próprios. A América, que está sempre de prontidão externa, mostrou-se ineficaz numa urgência interna.

Para o português, ¿o mais grave é que o terceiro mundo insiste em seguir o modelo americano¿:

¿ Nova Orleans trouxe à tona facetas dos EUA omitidas, comuns em países pobres, como desigualdade social e racismo. A arrogância militar esconde sua vulnerabilidade.

Os dois traumas nacionais marcam o governo de George Bush de maneiras diferentes. Na primeira, ainda não existia um erro chamado Iraque. E o fato da supremacia americana ter sido posta em xeque pela primeira vez fez com que o presidente saísse fortalecido em seu projeto antiterrorista da guerra do Bem contra o Mal. No entanto, o país que prometia exportar democracia acabou se perdendo na ambição conservadora. A guerra contra Saddam Hussein minou a credibilidade de Bush, e a descrença se intensificou na atual catástrofe. Prova disso é o crescente índice de desaprovação do governo, atualmente em 60%.

Na opinião da analista de políticas de Segurança Interna, Alane Kochems, da Heritage Foundation, o Katrina ¿despertou menos medo, mas apontou onde falta preparo no governo¿:

¿ A sociedade americana que aguentou o atentado terrorista é aquela que, num passado recente, não sofreu ataques em seu território. A última vez que um estrangeiro mirou no país foi na II Guerra Mundial ¿ afirmou, de Washington.

Para Kochems, o Katrina uniu os americanos na assistência humanitária, além de criar um cenário de solidarização externa:

¿ Muitas nações ofereceram assistência mesmo discordando da política americana. O furacão mostrou que o mundo está disposto a ajudar em tempos difíceis como esses ¿ acredita, mesmo que o governo Bush não tenha aceitado as ofertas de Fidel Castro e Hugo Chávez.

Já para Michael Mann, professor de Sociologia da Universidade da Califórnia, enquanto o 11/9 despertou a união nacional e obteve a ¿simpatia externa¿ contra o terror, o Katrina fez com que americanos se sentissem humilhados por seus próprios dirigentes:

¿ O furacão dividiu a sociedade politicamente. O Estado mostrou-se fraco ao não estar presente quando seus cidadãos necessitaram ¿ afirmou. ¿ No entanto, não acredito que uma tragédia como essa conseguirá mudar as políticas liberais do governo ¿ avalia.

O rastro do Katrina expôs especialmente políticas sociais negligenciadas em detrimento da prioridade militar. A postura pode ser constatada, inclusive, no corte do orçamento do Corpo de Engenheiros do Exército, responsável, entre outros serviços, pela manutenção dos diques que protegem Nova Orleans de ser inundada pelas águas do rio Mississipi e do lago Ponchartrain. A reserva caiu de US$ 147 milhões, em 2001, para US$ 82 milhões em 2005. Além disso, um projeto de contenção de enchentes no estado de Louisiana, que este ano recebeu US$ 36 milhões, terá suas despesas reduzidas a US$ 10,4 milhões em 2006.

Hardt também não acredita que tais políticas vão sofrer qualquer transformação mesmo depois da devastação do Katrina. Pelo contrário, pessimista, o americano chega a apostar que Nova Orleans é como uma ¿página em branco¿:

¿ É um lugar onde se pode começar do zero e construir tudo de novo, inclusive uma cidade sem negros ¿ conclui.