Título: Apenas uma questão de imagem
Autor: Mariz Tadros
Fonte: Jornal do Brasil, 11/09/2005, Internacional, p. A14

Os céus do Cairo foram cobertos por estandartes em vermelho, azul e verde. Agitadas em ruas lotadas, as faixas proclamavam o apoio entusiástico de ¿fulano e sua família¿ ou de ¿beltrano e sua loja¿ a Hosni Mubarak e seu quinto mandato como presidente do Egito. Como a mídia parecia determinada a lembrar todos os dias, as faixas eram parte da primeira campanha eleitoral presidencial na história do país. Um pleito no qual uma emenda à constituição permitiu que se trocasse o ¿sim¿ ou ¿não¿ a um candidato por uma opção múltipla que supostamente abria espaço para os opositores. Muito poucos, aliás. O texto dificultava à Irmandade Muçulmana ¿ o maior adversário ¿ disputar, assim como aos independentes. Isso em função da exigência de 90 assinaturas de parlamentares, 10 de autoridades municipais e 14 de estaduais para legitimar candidaturas. Estas, em sua maioria, pertenciam a nomes ligados ao Partido Nacional Democrata (PND) de Mubarak. A emenda ao artigo 76, assim, introduziu um conceito de eleição livre, mas roubou-lhe a substância. Somado a isso, o veto a comícios três semanas antes do pleito completou o quadro pró-regime.

Assim, a oposição se viu em um dilema. Só duas pessoas conseguiram enfrentar Mubarak e perderam, já que a reeleição se deu com 78% dos votos: Numan Gumaa, líder do Wafd, um dos mais antigos partidos do Egito, e Ayman Nour, do recém-fundado e liberal Ghad (¿Amanhã¿). Outras duas legendas importantes, o esquerdista Tagammu e o Partido Nasserista haviam boicotado o processo desde o início por considerá-lo viciado. Críticos sugerem que a presença de Gumaa se deu por um acordo secreto com o PND. Sua participação se daria apenas para enfraquecer Nour em troca de mais cadeiras no parlamento na próxima disputa.

No caso da Irmandade Muçulmana, o grupo teria desistido também em função da promessa presidencial de liberdade para membros presos. Contribuiu para isso um comunicado no qual ao mesmo tempo em que rejeitavam apoio ¿a um corrupto, tirano, que há 24 anos se mantém no poder evitando reformas e através de leis de emergência¿, pediam à população que fosse às urnas. O apelo à votação ¿em quem o povo considerasse um justo¿ funcionaria como uma garantia ao governo de que não haveria alta abstenção. O grupo nega ter tido tal intenção.

Para o analista político Wahid Abd al-Magid, do Centro Al-Ahram de Política e Estudos Estratégicos, a ambigüidade da declaração abria espaço para um leilão pelo apoio. Cerca de 14 integrantes da Irmandade foram libertados no fim de agosto. Ainda assim, o grupo continuou negando o acordo.

Enquanto agia nos bastidores, o governo também trabalhava para passar a idéia de que havia um suspense genuíno em função de a possibilidade de Mubarak vencer por uma estreita margem de votos. Ansioso por ser visto junto ao eleitorado que sempre evitou, o presidente visitou indústrias e vilarejos. A imprensa o registrou bebendo chá com um sitiante enquanto observava as plantações. E projetou a imagem de uma pessoa, preocupada com os pobres e os cidadãos comuns. Relatório de 2005 do Banco Mundial informa que 43,9% dos egípcios vivem com menos de US$ 2 ao dia.

O programa eleitoral da situação foi ambicioso demais para ser real, dizem os críticos. Prometeu 600 mil empregos em seis anos, financiamento para as pequenas empresas, tanto quanto a facilitação para 900 mil novos empreendimentos de médio porte. Foi uma plataforma, no entanto, que não diferia muito das do Wafd e do Ghad. Todos falavam de reformas na educação e saúde, na modernização do sistema político, sem entrar em detalhes de como poderiam cumprir tais promessas. A única diferença entre eles estava na parte em que os opositores se comprometiam a combater a disseminada corrupção oficial, um tema que atingiu a muitos egípcios e que mantém o país nos últimos índices da Transparência Internacional. A propaganda eleitoral de Gumaa (itkhanna¿na , ou ¿estamos sufocados¿) mostrava pessoas sem ar após 24 anos sob o mesmo regime. A tevê estatal, dizem os críticos, recusou-se a exibi-la.

Mubarak também foi mostrado como ¿um novo homem¿ nas fotos de cartazes e faixas. Em vez dos ternos escuros, camisas e gravatas de forma a passar, também, a imagem de um homem muito mais jovem do que os 77 anos reais. Uma fonte do PND de um dos bairros pobres mais populosos do Cairo disse que as autoridades municipais da área receberam ordem de ir de loja em loja, de casa em casa, mandando que as famílias pendurassem as faixas de apoio ao presidente. De forma a não violar o teto de 10 milhões de libras do financiamento partidário para a eleição, as pessoas eram proibidas de doar dinheiro. O apoio seria expresso através da compra dos panos para as faixas, que depois seriam decoradas pelo PND. A ironia é que no bairro pobre, a maior parte dos moradores-doadores nem sequer possuía título eleitoral. Como disse um motorista de táxi:

¿ Não se poderia esperar que gente assim pusesse as faixas. Só Deus sabe porque o fizeram, mesmo sabendo que não poderiam votar.

Candidatos de oposição apontaram diversas irregularidades cometidas pelo PND. Falta de acesso igual nas tevês para comerciais, por exemplo. Apesar disso, o Instituto para os Direitos Humanos do Cairo (CIHRS) disseram que o tempo destinado aos adversários do governo na tevê estatal foi surpreendente grande. Em comparação com alguns jornais, a cobertura televisiva não se comportou tanto a favor do presidente. Nos periódicos independentes, o nível de liberdade oscilou, mas muitos assuntos até então banidos puderam ser abordados diariamente, como o papel da mulher do presidente, Suzanne, na vida política e o envolvimento do filho do casal, Gamal, na corrupção e na disputa pelo poder. O próprio Mubarak esteve sob foco não pela atuação, mas pela saúde, finanças e valores pessoais. Uma liberdade, aliás, estendida a questões sensíveis como as que envolvem a relação da igreja copta com o governo ¿ que não permitia que se dissesse que essa minoria poderia ter crenças políticas distintas.

Não só os jornais tiraram vantagens desse espaço. Iniciativas civis como o movimento Kifaya, grupo apartidário que reúne intelectuais, ativistas e jornalistas, saiu às ruas para protestar contra a candidatura do presidente ao quinto mandato. Também protestou contra a idéia inicial de que Gamal herdasse os poderes do pai com base na draconiana lei de emergência instaurada desde o assassinato de Anwar el Sadat, em 1981. Apesar de manifestar-se na maioria das vezes de forma pacífica, o Kifaya teve vários integrantes presos por desafiar a falta da autorização para protestos necessária (e virtualmente impossível de se obter). Outras entidades se encarregaram de acompanhar a eleição e a apuração. Sites como o shayfeen.com ( shayfeencom é ¿podemos ver você¿ em árabe egípcio) foram criados para que as denúncias de fraude pudessem ser encaminhadas. Tal desafio mostra que a visão de que o ativismo político egípcio morreu depois de 50 anos de monopólio governamental estava errada.

Em um discurso sobre a chegada da democracia ao país, a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, havia pedido que observadores internacionais da eleição pudessem ter acesso irrestrito ao pleito. Seus assessores repetiram o pedido várias vezes. Mas o governo proibiu a presença estrangeira sob garantia de confiança no Judiciário, que teria um representante em cada seção. ONGs locais como o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, dirigida pelo ex-secretário-geral da ONU Boutros Boutros-Ghali, ganharam na Justiça o direito de fiscalizar, mas o regime ignorou a decisão até poucas horas antes de as seções serem abertas. Ainda assim, correligionários do governo tentaram desqualificá-las junto ao público, acusando-as de receberem dinheiro de fora.

A confiança do governo na isenção escondia a aversão de Mubarak aos togados. O Clube de Juízes, uma organização de classe, havia ameaçado boicotar o pleito se não tivesse total liberdade dentro e fora das seções. E denunciou, entre outras coisas, que a comissão eleitoral escolhia fiscais judiciais com base em sua lealdade ao regime. O Clube também havia antecipado, em um estudo, que a abstenção seria muito alta, em torno de 52%, o que parece ter ocorrido. Com isso, o mundo exterior pode ver que, apesar dos esforços de Mubarak para mostrar uma eleição genuína, os egípcios não compraram esse peixe.

A explicação para a reação tépida do povo não está na apatia, mas no medo. Há quem afirme que a modesta abertura surgida enquanto Mubarak construía sua imagem de democrata para o mundo desaparecerá em breve, com o retorno às perseguições. Outros garantem que o teste real será nas eleições parlamentares, quando os mesmos grupos formados para enfrentar o regime na disputa presidencial poderão formar coalizões capazes de suplantar o PND a nível regional. (Merip)