Título: O ocaso da baía
Autor: Branca Nunes
Fonte: Jornal do Brasil, 11/09/2005, Rio, p. A25

Na madrugada do dia 3 de setembro, Ailton Sodré, a bordo do barco Rafael, acompanhou com o olhar dos perplexos o vagaroso avanço da mancha negra que tingia progressivamente as águas da Baía de Guanabara. A imagem reavivou em sua memória lembranças de outra madrugada, a de 18 de janeiro de 2000. O pescador Ailton foi uma das testemunhas silenciosas do derramamento de 1,3 milhão de litros de óleo, responsável pelo segundo maior desastre ecológico ocorrido na área marítima do Rio de Janeiro. Perde apenas para o vazamento, em 1974, de seis milhões de litros de óleo do navio Tarik. Em 2000, já acostumado com a presença de óleo na Baía, Ailton não se assustou. Recolheu a rede, encerrou a pescaria e foi dormir. A dimensão da tragédia foi constatada no dia seguinte. Ao acordar, a praia em frente à comunidade pesqueira do Caju, onde mora, estava tomada por uma grossa camada de óleo. A pesca foi proibida pelas autoridades por seis meses. Além da privação para exercer a atividade que lhe garantia o sustento, Ailton perdeu uma rede de pesca avaliada em R$ 60 mil.

A Petrobras, responsável pelo vazamento, foi multada em R$ 50 milhões. Algumas pessoas foram beneficiadas com cestas básicas e uma pequena ajuda de custo. Ailton, como centenas de pescadores artesanais, não recebeu um centavo. No dia 3 de fevereiro de 2000, a Federação dos Pescadores do Rio de Janeiro (Feperj) entrou com uma ação contra a empresa para o pagamento de uma indenização para os pescadores. O processo se arrastou até o último 4 de abril, quando, depois de recorrer três vezes de decisões favoráveis à Feperj, a Petrobras foi condenada em última instância. Agora, a perícia da 25ª Vara Cível do Rio avaliará quantos pescadores serão incluídos e quanto será pago.

¿ Ganhamos, mas o processo ainda pode se arrastar por alguns anos ¿ afirma George Telles Cunha, advogado da Feperj. ¿ Um processo no Brasil dura em média dez anos e a Petrobras tem a possibilidade de recorrer da decisão da perícia. O avanço da poluição na Baía de Guanabara faz com que, a cada ano, centenas de pescadores abandonem a profissão. Para sobreviver, trabalham como pedreiros, marceneiros, zeladores de prédios ou em outras atividades mais rentáveis. Na comunidade do Caju, depois do vazamento de 2000, o número de pescadores caiu de 3 mil para 550. Aqueles que, como Ailton, insistem na pescaria, ganham menos de R$ 20 por semana ¿ valor que já foi dez vezes maior.

Aos 77 anos, 65 deles passados sobre as águas da Baía, Ailton não consegue se imaginar longe da profissão. Ele faz parte da segunda, das quatro gerações de pescadores da família Sodré. No cais, o filho Jorge e o neto Rafael ajudam o incansável pescador, de cabelos brancos e mãos marcadas por cicatrizes, a preparar o barco para a próxima partida.

¿ Sei que a minha idade não permitirá ver novamente a Baía de Guanabara limpa. Mas lutamos tanto por essa indenização que tenho certeza de que vou viver o tempo suficiente para ver esse dinheiro nas mãos de quem mais sofreu as consequências daquele desastre ¿ acredita Ailton.