Título: Moeda forte
Autor: Waleska Borges
Fonte: Jornal do Brasil, 11/09/2005, Rio, p. A27
O jeitinho brasileiro está cada dia mais visível nas favelas cariocas. Basta voltar os olhos para o alto e concluir: construções se multiplicam verticalmente nas comunidades, fazendo das lajes não só um espaço de lazer e para expansão das casas, mas uma fonte de renda. Moradores do Complexo da Maré revelam que uma laje com espaço para construir quarto, sala, cozinha e banheiro está sendo vendida por algo entre R$ 8 mil e R$ 10 mil. A média é a mesma nas favelas da Zona Sul. No Vidigal, onde as lajes têm vista para o Leblon e de São Conrado, a valorização do telhado se dá pelo chão. - A laje só é mais cara quando o dono do telhado é o mesmo do terreno e paga o IPTU. As lajes em que os donos pagam imposto chegam a ser vendias por R$ 30 mil. Isso acontece em todas as favelas - conta Marta Alves, 40, moradora do Vidigal. Vendidas ou alugadas em separado do imóvel, as lajes se transformaram em moeda forte nas favelas. Moradora da Maré há 40 anos, Maria José de Souza, 80, conta que quando a nora ficou desempregada, seu filho resolveu construir sobre a laje uma escolinha. A professora desempregada passou a dar aulas no local.
- A escolinha não deu dinheiro. O povo daqui é de baixa renda e não podia pagar. Hoje, alugamos o espaço para a creche da prefeitura por R$ 300 - conta Maria, que também cede sua laje para festas da igreja. Creuza Dias, 46, que ergueu três andares sobre a sua primeira laje, vive do aluguel. Além de lojas, ela construiu quitinetes. Cada quartinho, no Complexo do Alemão - onde segundo levantamento do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), em 2000, eram 132 mil moradores em 16 comunidades - é alugado por R$ 100. Erguer mais cômodos na parte de cima também é uma forma de garantir a herança para filhos e netos.
Além do valor econômico, a laje assume o papel de área de lazer. O teto de concreto armado foi uma conquista tão importante quanto a própria casa para Sedineide Luís Isaías, 67 anos, moradora da Favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, em Bonsucesso. Com a ajuda dos oito filhos, ela conseguiu levantar o imóvel de quarto, sala, cozinha e banheiro, no lugar de um barraco vulnerável à chuva. Entretanto, a casa ficou pequena quando começaram a nascer os netos. Dois dos filhos casados moravam no local.
- A laje virou solução para os meus filhos terem o cantinho deles - conta. Hoje, além do segundo andar, mais uma construção cresce sobre a casa de Sedineide. A laje será a casa do genro, o marceneiro Luiz Gomes, 45. Há oito meses, ele toca a obra com a ajuda dos amigos. A inauguração já é esperada por toda a família. O dia de ''virar'' a laje é sempre comemorado com paneladas que vão da feijoada ao mocotó e à buchada. - Tudo é feito com muito sacrifício e no final temos que comemorar - justifica Luiz.
A cozinheira Juaciara da Conceição Meireles da Silva, 45, também moradora da Nova Holanda, construiu sua casa sobre a laje da sogra. Por cima do teto do segundo andar, o filho de Juaciara, de 29 anos, ergueu mais uma casa. No último andar, uma parte da laje foi reservada para o lazer e para estender roupas. - Costumamos reunir a família na laje para festas e colocamos uma piscina de plástico para tomar sol - conta Juaciara, enquanto estende a roupa no varal com a ajuda da neta. Assim como a família de Juaciara, a auxilar de produção Lívia Maria, 25, costuma reunir as amigas nos sábados para tomar sol na laje.
- Gosto de sair com a marquinha do biquíni. Ficar na laje é mais barato do que ir à praia - explica Lívia. Nos dias de feriados e fins de semana, crianças também aproveitam as lajes para soltar pipa. Assim como dezenas de moradores das favelas, Marta, há 25 anos no Vidigal, faz planos para o futuro da sua laje. Ela pretende deixá-la de herança para as duas filhas. Apesar das benfeitorias, as lajes também trazem problemas. Algumas delas são usadas por olheiros do tráfico de drogas.
A laje pode se transformar em local de perigo nos dias de tiroteio. Quando estão sobre elas, moradores podem ser confundidos com traficantes e se tornam alvos para os dois lados da guerra. Especialista em danos nas construções, Antero Parahyba, do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Rio, lembra que, apesar de estarem dando certo nas favelas, as lajes sem cálculos representam riscos de desabamentos. Segundo ele, uma laje usada para cobertura é calculada pelo engenheiro para suportar até 50 quilos por metro quadrado. Já a laje usada como piso suporta até 150 quilos por metro quadrado.
- A solução seria a prefeitura disponibilizar algumas plantas de casas básicas e depois chamar o engenheiro para conferir - sugere Parahyba. Coordenador-geral do Observatório de Favelas, Jailson de Souza acredita que a política pública habitacional deve levar em conta as representações e vivências dos moradores. - Deve-se ir além da simples construção de casas, desenvolver um conjunto de ações de educação, trabalho, renda, questão ambiental, saúde, lazer e cultura - avalia Jailson. Para Eliana Souza e Silva, do Ceasm, há uma carência de políticas habitacionais que planejem o crescimento das comunidades.
- A laje é uma alternativa de crescimento econômico que tem dado certo - comenta Eliana. O pesquisador Ignácio Cano, da Uerj, lembra que a laje cumpre o papel de proporcionar uma forma flexível de expansão da moradia coletiva - o que não ocorre nas edificações tradicionais. O pesquisador observa, no entanto, que persiste o estigma de rejeição social contra os moradores.
- A discriminação de moradia é mais forte que a racial e a sexual - observa Ignácio Cano.