Título: Fartura do desconto em folha
Autor: Samantha Lima e Bruno Rosa
Fonte: Jornal do Brasil, 11/09/2005, Economia & Negócios, p. A18
O número de operações de crédito à pessoa física avançou 55% no período de um ano e meio, entre janeiro de 2004 e julho de 2005, aponta o Banco Central. O salto foi impulsionado pelo avanço do crédito consignado em folha de pagamento, modalidade disponível para funcionários com carteira assinada e aposentados pelo INSS. Nessa modalidade, o total de recursos disponíveis para trabalhadores cresceu mais de 200% no período e, para aposentados, o salto foi de inacreditáveis 1.400% em apenas um ano. O resultado é que metade dos brasileiros está encontrando dificuldades em pagar as prestações, como mostra pesquisa recente feita pela seguradora Cardif, do grupo BNP Paribas. E muitos dos financeiramente encalacrados são pessoas que avançaram com vontade nas facilidades do crédito consignado com desconto em folha - com seus juros mais baixos - que permitem crédito fácil ao limite de 30% da renda por prestação.
O casal de funcionários públicos Jorge Luis Vieira da Silva, engenheiro de 55 anos, e Regina Celia Loureiro da Silva, professora de 57 anos, contraiu dívidas via folha de pagamento. Mas esta não é a única forma de crédito utilizado pelo casal, que mora na Tijuca. Adeptos do cartão de crédito e cheque pré-datado, depois que passaram a contrair empréstimos consignados, eles viram sua vida financeira se complicar.
- Hoje é impossível comprar alguma coisa à vista. Com o desconto em folha, a minha situação com o cartão de crédito se complicou, porque vai chegar a fatura e parte do meu salário já está comprometida. Hoje, por exemplo, estou completamente enrolado. Às vezes, tenho que usar todas as modalidades de crédito porque não tenho outra solução - diz Jorge, enquanto passeava no Shopping Tijuca com a esposa.
Entre os aposentados e pensionistas, 23% já recorreram ao crédito consignado. De forma geral, o índice de inadimplência, segundo o BC, está em queda, influenciada pelo efeito do crédito consignado - uma linha com riscos de calote próximos a zero.
Embora o mercado oficialmente demonstre otimismo com a euforia do crédito, as estatísticas de pelo menos um indicador já acenderam o sinal amarelo. Dados do Telecheque mostram que o índice de recuperação de cheques devolvidos caiu de 42% para 36% em menos de seis meses - uma redução de 14% na capacidade do emissor de cheque sem fundo de limpar o nome.
- Não tenho dúvidas de que o comprometimento da renda através do crédito consignado esteja afetando a capacidade de do consumidor de honrar outras contas, já que ele não tem como fugir da dívida. Vejo nesse fenômeno uma bolha, que poderá irromper-se logo - afirma José Antônio Praxedes, vice-presidente do Telecheque.
Segundo o executivo, um indicador de que o crédito consignado é o responsável maior pelo estrago é a mudança no perfil do emissor do cheque sem fundos.
- Estamos notando que o número de inadimplentes com idade superior a 55 anos, que era quase inexistente, tem aumentado muito, o que, para mim, é uma evidência de que o crédito consignado está trazendo aos aposentados dificuldade de pagar outras dívidas - atesta Praxedes. - Entre as causas apontadas pelos inadimplentes para não terem coberto o cheque, o descontrole e o desemprego caminhavam juntos. Hoje, o descontrole deu um salto. Nossa empresa tem 23 anos e nunca vimos nada semelhante antes. Percebemos que pessoas que nunca passaram cheques sem fundos estão recorrendo à prática e se tornando reincidentes.
O analista já prevê uma data para estouro dessa bolha de dinheiro fácil.
- Acredito que a bolha possa estourar já em janeiro, quando o consumidor se lançar às compras para o dia das crianças e o Natal, diante de toda essa oferta de crédito. As conseqüências podem ser terríveis, com retração do consumo, causando redução da produção e levando a um círculo vicioso que já conhecemos.
Outro indicador de que esse avanço está minando a capacidade do brasileiro de pagar dívidas é o alongamento do prazo dos financiamentos.
- Há um ano, eletrodomésticos eram financiados em, no máximo, dez, 12 meses. Hoje, já vemos lojas vendendo em 24 meses. Sem falar em concessionárias de veículos que estão postergando a entrada para fevereiro do ano que vem - analisa Praxedes.
O vice-presidente da Telecheque não está sozinho no receio quanto ao avanço desordenado do crédito. Na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, o professor de finanças Fábio Gallo Garcia não crê em desdobramentos tão catastróficos, porém, acredita que o mercado está se fiando em estatísticas de inadimplência geral ''maquiadas''.
- É evidente que o crédito consignado está jogando a inadimplência média para baixo. E não há por que pensar em um risco de calote em queda, se os indicadores macroeconômicos do país não melhoraram nos últimos meses. Como acreditar que o brasileiro está honrando mais seus compromissos do que antes, se a renda e o emprego não avançaram e a taxa de juros não caiu? - questiona.
Garcia é cético em relação às alegações de que o crédito consignado está sendo usado como artifício para troca de dívida mais cara por outra mais barata.
- O fato é que não sabemos se realmente está indo para troca de dívidas ou para consumo. Pelo menos o crédito consignado tem uma vantagem, que é pedagógica: quem não se organiza fica sem dinheiro porque não se pode fugir do desconto.