O Estado de São Paulo, n. 46690, 17/08/2021. Economia p.B1

 

Em meio à crise hídrica, governo omite índice de risco de novo racionamento

 

Anne Warth

Marlla Sabino

Na pior crise hídrica da história do País, o governo não divulga um indicador que determine se e quando um racionamento de energia deve ser iniciado. Cálculos sobre as chances de ocorrer uma falta de eletricidade, que eram publicados mensalmente, deixaram de ser informados no início da gestão Bolsonaro. Esse dado, que avalia a situação de suprimento para vários cenários de chuvas, continua a ser calculado, mas deixou de ser o principal instrumento para a tomada de decisões sobre a necessidade ou não de um racionamento, afirma o Ministério de Minas e Energia (MME).

O ministro Bento Albuquerque afirma publicamente que o governo não trabalha com a hipótese de um racionamento de energia, mas o setor privado avalia que a situação não é confortável. Maior consultoria de energia do País, a PSR vê piora na situação de suprimento de energia e calcula que o risco de haver racionamento no segundo semestre varia de 10% a 40% entre setembro e novembro, dependendo do crescimento da demanda.

Historicamente, o governo sempre divulgou o “risco de déficit” após as reuniões mensais do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), grupo coordenado pelo MME. Desde janeiro de 2019, o dado deixou de ser publicado. Esse indicador era separado por regiões e avaliava a situação de suprimento com base na série histórica de informações climáticas utilizadas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), de 91 anos. O risco também era apresentado para uma amostra de 2 mil cenários artificiais a partir do histórico e que reproduzem secas mais severas que as ocorridas.

“O mundo busca parametrizações para a tomada de decisão. Utilizamos termômetro para monitorar febre, e a partir de 37,5 graus é recomendado o uso de analgésico. Utilizamos o Value at Risk (VAR) para dizer quando um portfólio financeiro deve ou não ser desfeito no setor financeiro”, compara o professor do Departamento de Engenharia Elétrica do CTC da PUC-RIO Alexandre Street. “Por que não temos um índice de monitoramento da situação do abastecimento energético para saber se devemos ou não decretar um racionamento? Não faltam metodologias. Bastam boa vontade e um pouco de organização institucional.”

O Estadão/broadcast questionou o MME oficialmente sobre qual é a métrica utilizada para decretar um racionamento, já que o risco de déficit, apesar de ainda ser calculado, não serviria mais como parâmetro, de acordo com a própria pasta. “Não existe uma métrica definida. Mas, sim, uma análise multifatorial que leva em consideração a perspectiva de consumo e de chuvas para os próximos meses. Essa análise é realizada mensalmente pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) com base nos cenários apresentados pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)”, disse a pasta.

Já o ONS disse que “não há métrica consolidada no setor elétrico brasileiro que possa ser usada para decretar o início e o fim de um racionamento de energia”.

 

Medidas. A relação entre o aumento do risco de déficit e a ocorrência de apagões é clara. Em janeiro de 2015, um dos piores meses do passado recente devido ao baixo nível dos reservatórios, recordes de consumo de energia e calor intenso, o risco de racionamento chegou a bater em 4,39% no Sudeste/centrooeste, considerando a série histórica, e em 7,3% na série feita por simulações. Foi naquele mesmo mês de janeiro de 2015 que o País registrou um pico de consumo às 14h30 do dia 20, que deixou 10 Estados e o Distrito Federal sem energia por mais de uma hora, desligando, inclusive, linhas de metrô da capital paulista. O limite na época era de 5%, ou seja, o governo era obrigado a adotar medidas adicionais para assegurar o suprimento se o histórico de chuvas – e os cenários artificiais criados a partir delas – mostrasse chances de faltar energia em mais de 5% deles.

Para Luiz Barroso, presidente da PSR, diversas ações podem diminuir o risco de até 40% de chances de racionamento, como bônus financeiro para quem poupar energia, flexibilização dos usos múltiplos e volumes mínimos dos reservatórios de hidrelétricas–ou seja, usara água primordialmente para geração de energia, atendendo aponta do consumo –, além da entrada em operação de novas usinas.

O maior risco, segundo ele, éo de o sistema operar no limite nos horários de maior demanda, no início d atarde. Aavaliação é de que as medidas mitigatórias em andamento não resolvem o problema da ponta. Barroso explica que a vazão–quantidade de água que chega aos reservatórios das hidrelétricas–tem pioradoo que aumenta o risco de faltar energia nas próximas semanas. “Se o Sul piorar, ele não só deixa de ajudar o Sudeste como pode precisar de ajuda, o que piora a situação do abastecimento em todo o País.” A consultoria assumiu um crescimento no consumo de 7,8% neste ano, em relação a 2020 – e, mais especificamente, de 9% entre agosto e dezembro.

 

'Análise multifatorial'

"Não existe uma métrica definida. Mas uma análise multifatorial que leva em consideração a perspectiva de consumo e de chuvas."

Nota do Ministério de Minas e Energia

 

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Em ano eleitoral, conta de luz pode subir quase 17%, estima agência


Crise hídrica e alta do dólar, que causa impacto na produção de Itaipu, devem afetar tarifa em 2022, aponta a Aneel

 

Além do risco de racionamento de energia e apagões, o governo federal terá de lidar com a pressão nas contas de luz em 2022 – ano de corrida eleitoral. Cálculos preliminares da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) indicam que as tarifas de energia podem subir, em média, 16,68% no ano que vem, principalmente por causa da crise hídrica que o País enfrenta atualmente. A estimativa foi apresentada ontem pelo superintendente de Gestão Tarifária da agência reguladora, Davi Antunes Lima, em audiência pública na Comissão de Legislação Participativa da Câmara.

Segundo ele, diversos fatores devem contribuir para a alta nas tarifas. Com o agravamento da crise hídrica, a Aneel estima que os valores pagos pelos consumidores por meio das bandeiras tarifárias não serão suficientes para fazer frente aos custos com o uso de usinas térmicas – e esses custos deverão ser repassados aos consumidores em 2022, mas com incidência de juros. A previsão é de que a chamada Conta Bandeiras feche o ano com rombo de R$ 8 bilhões.

Pesam também os custos das medidas aprovadas pela Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (CREG), que somariam entre R$ 2,4 bilhões e R$ 4,3 bilhões, segundo a Aneel. A alta do dólar, que impacta o valor da energia da Itaipu Binacional, e o reajuste de contratos antigos de 17 distribuidoras atrelados ao IGP-M também devem pressionar as tarifas. De julho de 2020 a junho de 2021, o indicador subiu 35,75%.

Antunes reconheceu que as tarifas estão pressionadas e afirmou que a agência reguladora já analisa medidas para mitigar os impactos nas tarifas no ano que vem. "A meta que a Aneel tem este ano, que é logo depois da pandemia, um ano bastante difícil tanto do ponto de vista do consumidor quanto do ponto de vista da crise energética, é buscar reajustes tarifários inferiores a dois dígitos", disse.

Na tentativa de atenuar os reajustes, a agência estuda uma série de medidas, entre elas antecipar para 2022 o aporte de recursos da privatização da Eletrobras para reduzir os encargos pagos pelos consumidores, que somariam R$ 5 bilhões, e postergar novamente o pagamento da parcela de remuneração das distribuidoras.