O Estado de São Paulo, n. 46691, 18/08/2021. Política p.A8

 

CPI vê crime de presidente por uso de relatório paralelo

 

Daniel Weterman

 

Integrantes da CPI da Covid afirmam que presidente Jair Bolsonaro pode ter cometido um crime ao usar um documento adulterado para questionar o número de mortos pela pandemia do novo coronavírus no Brasil. Em junho, o chefe do Executivo atribuiu ao Tribunal de Contas da União (TCU) um levantamento sobre supernotificação de mortes, informação desmentida pela Corte.

Ontem, o auditor do TCU Alexandre Marques prestou depoimento na CPI e assumiu a autoria do documento. Ele alegou que produziu o levantamento internamente e admitiu que o conteúdo não era oficial do TCU. Além disso, Marques reconheceu que não era possível apontar supernotificação com base naquelas informações. E relatou que seu pai, Ricardo Silva Marques, foi quem repassou o documento a Bolsonaro.

"O arquivo não era um papel de trabalho, uma instrução processual, um documento oficial do TCU, nada do tipo. Era apenas um debate preliminar e aberto, mas que foi considerado encerrado", disse o auditor. "Na conversa que tive com a colega que está coordenando o trabalho, concordamos que seria impossível haver um conluio para, deliberadamente, supernotificar os casos de óbitos de covid-19", declarou.

A adulteração foi indicada conforme as alterações que o documento sofreu entre o conteúdo produzido pelo auditor e a divulgação do presidente. De acordo com Marques, o documento foi compartilhado com auditores do TCU em 31 de maio e enviado ao pai em 6 de junho, um dia antes de Bolsonaro citar o relatório paralelo.

Após a declaração de Bolsonaro, uma versão do documento circulou no formato PDF e com selo do TCU, características normalmente usadas em relatórios oficiais. O auditor, no entanto, afirmou que produziu o levantamento no formato Word e sem qualquer inscrição oficial do tribunal.

No dia 8, durante transmissão ao vivo nas redes sociais, Bolsonaro admitiu que mexeu no documento, mas voltou a questionar o número de óbitos. A suspeita foi afastada pelo próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, durante depoimento na CPI da Covid. Queiroga reforçou que os números divulgados diariamente são oficiais e que não há evidências sobre adulteração das informações.

O pai de Alexandre Marques é o coronel da reserva do Exército Ricardo Silva Marques, foi colega de Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e ocupa um cargo de gerente da Petrobrás. O auditor negou que seu pai tenha feito alterações e disse não saber a origem da adulteração. "Isso eu não tenho como responder, porque, a partir do momento em que o arquivo cai na mão de outras pessoas... Hoje em dia na internet tudo viraliza, né? Tudo é compartilhado rapidamente, então não tem como eu presumir a autoria de ninguém."

 

'Indício'. Para o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-ap), Bolsonaro cometeu crime contra a fé pública, previsto no Código Penal, por "falsificar documento público ou alterar documento público verdadeiro". A conclusão poderá fazer parte do relatório final do colegiado, que avalia solicitar o indiciamento do presidente ao Ministério Público Federal, responsável por investigar o chefe do Executivo em caso de crime comum. "Para mim, é mais um indício forte de crime."

A senadora Simone Tebet (MDB-MS) disse que Bolsonaro cometeu crime ao não ter questionado a adulteração mesmo sabendo que estava diante de um documento "apócrifo". Para ela, também há indício de falta de decoro. "Ele tinha que perguntar para o seu entorno quem é que fez isso, quem é que manipulou esse documento privado e o transformou falsamente em um documento público. Quem tem conhecimento de um crime como esse se torna cúmplice", afirmou a senadora.

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), alegou que o presidente recebeu o documento e levantou os questionamentos porque o número de mortes está diretamente relacionado às regras para envio de recursos financeiros a Estados e municípios. "O presidente teve acesso ao referido documento, que já estava em domínio público."