Título: O país cansado de severinos
Autor: AUGUSTO NUNES
Fonte: Jornal do Brasil, 13/09/2005, País, p. A2

O Congresso é a cara do país, ensina uma lição que tem a idade do primeiro parlamento. A frase se aplica ao Brasil, com uma agravante: o rosto esculpido pelo voto dos eleitores exibe cicatrizes e deformações impostas por bisturis malandros. Foram manipulados para desfigurar a representação proporcional e procriar partidos de aluguel úteis a todos os governos. A ressalva não anula a constatação essencial: o Legislativo é um retrato exemplar deste país multifacetado. Os componentes da geléia geral estão representados no Congresso. Não por partidos de verdade, que ainda estão por nascer (neste deserto de homens e idéias, como resumiu o grande Oswaldo Aranha, partidos que mereçam esse nome nunca passaram de um brilho no olhar dos raros estadistas). Em vez de legendas genuínas, temos bancadas suprapartidárias.

Algumas se movem com propósitos definidos e em tempo integral, como a ruralista ou a evangélica. Outras se formam ao sabor das circunstâncias, como a bancada do gatilho e a dos pacifistas, no momento empenhadas num plebiscito tão mobilizador quanto eleição de síndico. Sobretudo, proliferam bandos que retribuem sem barulho excessivo o "apoio das bases". Juntos, eles compõem a vastíssima bancada dos fisiológicos.

Unida pela determinação de extorquir vantagens do governo até que a morte os separe, essa tribo imensa se divide em grupos a serviço de tudo. Os aglomerados de malocas abrigam tanto extremistas que invadem terras para semear velharias ideológicas do século 19 quanto ultraconservadores estacionados no século 17. Sobram pais da pátria para representar bandidos de todos os calibres. Até os honestos são representados no Poder Legislativo.

Se o Congresso foi sempre a cara do Brasil, os presidentes da Câmara e do Senado eram mais confiáveis que as duas casas legislativas. O baixo clero se aquietava em seu canto, à espera da orientação de cardeais providos do juízo hoje em falta. A Câmara eleita nos anos 80 pelo Brasil redemocratizado, por exemplo, não era lá essas coisas quando vista em conjunto. Melhorava muito, quando encarnada pelo presidente Ulisses Guimarães.

A chegada à presidência de um Inocêncio de Oliveira mostrou que a banda podre se cansara do papel de figurante. Nos anos 90, Luís Eduardo Magalhães, Michel Temer e Aécio Neves foram presidentes bem acima da média dos integrantes da Câmara. A ascensão de João Paulo Cunha, sabe-se agora, prenunciou o naufrágio consumado pelo obsceno acasalamento que gerou Severino Cavalcanti.

De onde menos se espera, é que não vem nada mesmo. O que se poderia esperar de Severino! Nada. Como sempre agira nos labirintos das secretarias que cuidam de nomeações e contratos, passara despercebido até instalar-se no centro do palco. Sem perceber, sentou-se à beira do penhasco.

O atropelador compulsivo do decoro parlamentar foi fiel ao currículo desde o primeiro minuto no cargo. Foi indecorosa a exposição do umbigo na camisa desabotoada. Foi indecoroso ouvi-lo contar a estória do bêbado que salvou da cadeia em João Alfredo, embora tenha depredado um bar. Foi indecoroso contemplar a gula por gazuas federais, como "aquela diretoria da Petrobras que fura poços". Foi indecoroso saber que ele não paga dívidas de campanha. Mais que indecorosos, são intoleráveis os insultos dirigidos ao deputado Fernando Gabeira.

Por indecoroso, Severino deve ser prontamente afastado da presidência da Câmara e ter o mandato cassado. Por suspeito de corrupção, deve ser remetido à delegacia mais próxima. É parada obrigatória para todo fora-da-lei.