O Globo, n. 32720, 08/03/2023. Política, p. 4

Presente Privatizado

Geralda Doca
Manoel Ventura
Jeniffer Gularte


O ex-presidente Jair Bolsonaro recebeu pessoalmente um pacote de joias, trazido da Arábia Saudita ao Brasil pelo então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e que não foi declarado à Receita Federal. O conjunto incluía um relógio, uma caneta, um par de abotoaduras, um anel e um tipo de rosário, todos da marca suíça Chopard. O material não está armazenado no acervo histórico da Presidência da República, como determina a lei. Como revelou a colunista do GLOBO Bela Megale, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, coronel Mauro Cid, tem dito a pessoas próximas que as joias estão no galpão que guarda o acervo pessoal do ex-presidente. O advogado de Bolsonaro, Frederick Wassef, admitiu que o ex-presidente ficou com “bens de caráter personalíssimo recebidos em viagens”.

O material, oferecido como um presente do governo saudita ao Estado brasileiro, foi entregue a Albuquerque durante um evento em que o exministro representou Bolsonaro naquele país. Na mesma ocasião, as autoridades árabes deram um outro estojo de joias, que continha um colar, anel, relógio e um par de brincos de diamantes também da marca Chopard. Esse conjunto, avaliado em R$ 16,5 milhões, foi retido pela Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos porque a entrada deles não foi formalmente comunicada, e os impostos referentes a eles não haviam sido pagos. De acordo com o jornal O Estado de São Paulo, que revelou o caso, essas peças seriam dadas à então primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

Crime tributário e pressão

A Polícia Federal instaurou um inquérito para investigar se houve o crime de descaminho (entrada de bens no país sem respeitar os trâmites burocráticos e tributários) e advocacia administrativa, quando um funcionário público se utiliza de sua função para interesses privados. O ex-presidente, a ex-primeira-dama e o coronel Mauro Cid devem ser ouvidos. A ControladoriaGeral da União (CGU) também vai apurar o caso.

— Se fosse para o Estado, quem trouxe tinha que informar que era do Estado. Se fosse para a pessoa física, teria de informar da mesma forma. O dever de informar não foi respeitado. Assim, já temos esse possível crime de descaminho —diz a advogada Victória Sulocki, professora da PUC-Rio.

Advogado de Bolsonaro, Wassef afirmou que o ex-presidente“declarou oficialmente, os bens de caráter personalíssimo recebidos em viagens, não existindo qualquer irregularidade em suas condutas”. O advogado disse que “estão tirando certas informações de contexto gerando mal entendido e confusão para o público” e disse que seu cliente é alvo de “perseguição política”.

Wassef recorreu ainda a norma do Tribunal de Contas da União (TCU) para afirmar que as joias seriam itens de caráter pessoal e que, por isso, não precisariam ser incorporadas ao acervo público da Presidência.

O entendimento do TCU, porém, estipula que pedras preciosas não se enquadram no caráter pessoal. Um acórdão de 2016 referendou os limites entre presentes pessoais e ao Estado. “Imagine-se a situação de um chefe de governo presentear o presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que possam incorporar-se ao patrimônio privado do presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”, escreveu o ministro Walton Alencar, relator do caso.

A PF vai apurar, entre outro pontos, por que o segundo estojo, com itens masculinos, ficou guardado durante um ano no Ministério de Minas e Energia (MME), como revela um documento ao qual O GLOBO teve acesso. O conjunto só foi formalmente entregue à Presidência no dia 29 de novembro do ano passado.

O material em questão entrou no Brasil em outubro 2021, sem ser declarado, pelas mãos do ex-ministro de Minas e Energia. Ele trouxe o estojo na sua bagagem pessoal. A caixa de joias só foi para o acervo da Presidência na antevéspera do fim do mandato de Bolsonaro. No mesmo dia, um recibo assinado às 15h50 mostra que as peças foram entregues ao então presidente. Ao fim do documento, um tópico questiona se o material foi visualizado pelo chefe do Executivo. A resposta é “sim”.

No recibo de entrega ao Gabinete Adjunto de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República, consta que a caixa contém itens “destinados ao Presidente da República Jair Messias Bolsonaro”.

A Receita vai intimar Albuquerque para que ele se explique sobre o destino dado aos presentes dos sauditas. Não há estimativa ou avaliação pública desse segundo lote de joias.

Empenho de Bolsonaro

De acordo com a colunista Bela Megale, o ex-titular do Planalto agiu pessoalmente para reaver as joias que haviam sido apreendidas pelo Fisco em Guarulhos. Em conversas com pessoas de sua confiança, Cid relatou que Bolsonaro determinou que ele entrasse em contato com o então chefe da Receita, Júlio César Vieira Gomes, para liberar as joias, nos últimos dias do governo.

Bolsonaro acionou o ajudante de ordens ao saber que elas iriam a leilão. Na conversa com o assistente, o então presidente disse que “não ia deixar nada para Lula”, referindo-se ao presidente que assumiria dali alguns dias. Cid, então, telefonou para Vieira, que o orientou a enviar um documento oficial requerendo as peças.

O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro relatou a aliados que o destino final seria o acervo do chefe. Isso significa que, se as peças de diamantes fossem liberadas pela Receita, Bolsonaro as levaria com o restante de sua mudança pessoal, ao invés de deixá-las sob o poder do Estado. A interlocutores, Cid afirmou o “acervo pessoal” de Bolsonaro contém cerca de nove mil itens guardados em um galpão alugado pelo ex-presidente.

A revelação aumenta a pressão sobre o antigo titular do Planalto, que permanece nos Estados Unidos, para onde embarcou dois dias antes fim de seu mandato, sem data para retornar. Ontem, o senador Flávio Bolsonaro (PLRJ) chegou a publicar nas redes sociais que o pai voltaria ao Brasil neste mês: “Bolsonaro vem aí”. Minutos depois, ele apagou a postagem.

Procurado, Bolsonaro negou que tenha cometido qualquer irregularidade. “Como jamais existiu qualquer escândalo ou um único caso de corrupção durante os quatro anos de governo Bolsonaro, buscam hoje, a qualquer custo, criar diversas narrativas que não correspondem a verdade, em verdadeira perseguição política”, diz nota assinada pela defesa do ex-presidente.

Na mesma linha, Bento Albuquerque afirma que “tomou as medidas cabíveis e de praxe, como sempre ocorreu, em relação aos presentes institucionais ofertados” ao Estado brasileiro. Alega que seu ministério encaminhou solicitação para que o acervo recebido tivesse o seu adequado destino legal”.