O Globo, n. 32723, 11/03/2023. Opinião, p. 2

Empresas que se beneficiam de trabalho escravo têm de ser punidas



É inaceitável que persistam no Brasil os flagrantes de trabalho análogo à escravidão no campo. O caso de maior repercussão aconteceu em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul. Mais de 200 contratados para colher uvas nas vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi foram encontrados em condições degradantes. Oriundos da Bahia, mal alojados em albergues e cumprindo jornadas extenuantes, só foram resgatados depois de alguns escaparem da vigilância e pedirem ajuda à polícia. Reclamaram de ser extorquidos na compra de itens básicos, de não receber o que havia sido prometido, de ser agredidos e torturados com choque elétrico e spray de pimenta. A Polícia Rodoviária Federal prendeu Pedro Augusto de Oliveira Santana, administrador da empresa de terceirização Fênix, solto depois de pagar fiança.

O Ministério Público do Trabalho (MPT), que investiga o caso, informou ontem que as vinícolas aceitaram assinar um Termo de Ajuste de Conduta por meio do qual pagarão R$ 7 milhões de indenização por danos morais, individuais e coletivos — R$ 2 milhões aos trabalhadores e R$ 5 milhões a projetos destinados a reparação. A Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul (Fecovinho) afirmou que o momento é de “transformação”, prometeu um debate e uma “consultoria setorial para toda a cadeia produtiva, para que ela possa estabelecer novas relações contratuais”.

A saída mais fácil teria sido responsabilizar apenas a empresa de mão de obra terceirizada. Mas seria a solução errada. É preciso deixar claro para quem contrata serviço de terceiros que não deve se preocupar apenas com a qualidade, mas também em fiscalizar a forma como é prestado. Por isso fez bem o MPT em impor indenizações às próprias vinícolas, além de manter a investigação sobre a terceirizada.

Elas não são as únicas a depender do trabalho em condições degradantes. No final de janeiro, o MPT resgatou 32 trabalhadores rurais em situação idêntica numa fazenda do interior paulista, fornecedora de cana-de-açúcar à Colombo, dona da marca Caravelas. Em vez da Bahia, haviam sido contratados em Minas. A lista de denúncias também provoca repulsa. Tiveram de arcar com a viagem, eram mal alimentados, o salário pago não foi o combinado, e parte deles ficou alojada num açougue.

O contrato de mão de obra terceirizada facilita a vida de empresas que necessitam de trabalho por períodos específicos e de quem só teria como alternativa o desemprego. O problema não está na terceirização em si, relação de trabalho referendada pelo Supremo. Está na falta de pagamento, na extorsão, na tortura, nas agressões e noutras barbaridades. Ainda que houvesse vínculo empregatício com as vinícolas, seriam crimes da mesma forma.

Empresas que se beneficiem de trabalho escravo de terceirizadas têm de ser consideradas corresponsáveis, investigadas e punidas. Só a punição exemplar, com o dano de imagem provocado no mercado, incentiva a reação preventiva necessária para extinguir esse tipo de barbaridade. Não pode haver atenuante nem tergiversação.

P.S. — A Colombo encaminhou ao GLOBO a seguinte nota sobre o editorial acima: A Colombo Agroindústria S/A repudia o trabalho análogo à escravidão e atuou de forma imediata na apuração dos fatos. A ação envolveu seis trabalhadores. Não havia irregularidade com os demais 26 cuja demissão foi exigida pelo MPT por serem da mesma região. Até o momento, apuramos que a contratação ocorreu em 10/01 e a fiscalização em 26/01. Não houve limite à liberdade de ir e vir. Os salários não estavam atrasados e seriam pagos em 05/02. A empresa prestadora de serviços atendeu às exigências e fez os pagamentos exigidos pelo MPT. É um episódio isolado envolvendo seis empregados de uma empresa especializada em plantio sazonal. Em 80 anos, a Colombo nunca passou por ocorrência como essa com seus mais de 6,5 mil colaboradores diretos e indiretos. A Colombo reforça seu compromisso com a legalidade, a ética e os direitos humanos e é a principal interessada no esclarecimento dos fatos e na melhoria de suas práticas.