O Estado de São Paulo, n. 46704, 31/08/2021. Internacional p.A10

 

Brasileiro é retirado pela fronteira com Paquistão


Ministério das Relações Exteriores diz que é o segundo cidadão do Brasil a deixar o território afegão

Felipe Frazão

 

O Ministério das Relações Exteriores (MRE) informou ontem que conseguiu retirar mais um brasileiro do Afeganistão, por meio de gestões diplomáticas. Este é o segundo cidadão brasileiro a deixar o território afegão, após a queda do governo apoiado por forças ocidentais e a volta do Taleban ao poder. Segundo o Itamaraty, ele deixou o país no domingo, por terra, pela fronteira com o Paquistão.

O brasileiro estava acompanhado de seis familiares de nacionalidade afegã e todos estão em boas condições de segurança e saúde, conforme informou a chancelaria. A operação foi coordenada entre a embaixada brasileira em Islamabad e o governo paquistanês. O Brasil não tem representação diplomática em Cabul, a capital afegã.

Na quinta-feira, um brasileiro e seus cinco familiares afegãos também deixaram o país em voo com destino a Madri, na Espanha. Esse resgate teve apoio dos governos espanhol e alemão e contatos da diplomacia brasileira.

Dos cinco brasileiros identificados pelo Itamaraty em solo afegão, dois que solicitaram ajuda para deixar o país conseguiram sair. Houve ainda outro caso de um brasileiro que mandou mensagens para a embaixada em Islamabad, mas perdeu contato.

"Um brasileiro entrou em contato com o plantão consular, por mensagem de texto no telefone da embaixada. Mas não temos muita informação ainda, estamos tentando saber mais", afirmou em entrevista ao Estadão, na semana passada, Olyntho Vieira, embaixador do Brasil responsável pelo Paquistão, Afeganistão e Tajiquistão. Segundo o diplomata, o homem brasileiro, que ele preferiu não identificar por segurança, indicou que vivia temporariamente no país.

O governo brasileiro estuda agora como atender pedidos de cidadãos afegãos que tenham visto de residência no Brasil e queiram deixar Cabul. "O Itamaraty segue monitorando a situação dos cidadãos brasileiros que manifestaram interesse em permanecer no Afeganistão. Está também atento aos pedidos de afegãos com visto de residência no Brasil, dentro das possibilidades legais de apoio a estrangeiros", disse o MRE.

Segundo o Itamaraty, o procedimento seria semelhante ao adotado para haitianos e sírios. Paralelamente, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) deu aval, em dezembro, para a simplificação do processo de requerimento de status de refugiados a afegãos que estejam fugindo do conflito.

No dia 21, o deputado e presidente da Comissão de Relações Exteriores, Aécio Neves, encaminhou ofício ao Ministérios da Justiça e Segurança Pública e ao Itamaraty solicitando a concessão de vistos humanitários a afegãos. A ideia é que as embaixadas brasileiras em Islamabad e Teerã, localizadas nos dois países que mais recebem refugiados afegãos, processem e emitam os vistos.

De acordo com dados do Conare, o país já reconheceu 162 refugiados afegãos. Desde 2016, foram 88, com recorde registrado em 2020, quando 30 pedidos foram aceitos. Neste ano, dois afegãos foram reconhecidos. Ainda de acordo com o Conare, nenhum pedido foi registrado desde domingo, quando o Taleban tomou o poder.

 

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Ataque dos EUA matou 7 crianças, diz família afegã


Relatos contradizem versão do Pentágono e indicam que veículo do EI pertencia, na verdade, a um funcionário de uma ONG americana

CABUL

 

Sobreviventes de um bombardeio com drones dos EUA relataram ontem que o ataque americano, lançado no domingo, matou uma família de 10 pessoas em Cabul, incluindo 7 crianças, um trabalhador de uma ONG humanitária americana e um funcionário contratado pelas Forças Armadas americanas.

Aos poucos, o presidente dos EUA, Joe Biden, vai descobrindo que retaliar o Estado Islâmico Khorasan (Isis-k) é mais difícil do que parece. A facção afegão do EI foi responsável pelo atentado da semana passada, que matou 170 no aeroporto de Cabul. Biden prometeu caçar os responsáveis e lançou ataques contra os terroristas.

A operação lançada no domingo, segundo o Departamento de Defesa dos EUA, teria destruído um carro com explosivos na capital do Afeganistão, eliminando uma ameaça ao aeroporto de Cabul. Ontem, no entanto, o saldo do bombardeio parecia bem mais trágico.

Zemari Ahmadi, que trabalhava para a ONG Nutrition and Education International, estava voltando do trabalho para casa depois de dar carona para colegas, segundo relataram parentes e colegas entrevistados pelo New Tork Times em Cabul.

Quando ele entrou na rua estreita onde vivia com seus três irmãos e vários parentes, as crianças da casa, vendo seu Toyota Corolla branco chegar, correram para cumprimentálo. Alguns subiram a bordo do carro ainda na rua, outros se reuniram enquanto ele estacionava o veículo no pátio de casa. Foi então que o drone disparou.

O míssil atingiu a extremidade traseira do Corolla, no estreito pátio dentro da casa, explodindo portas, quebrando janelas e espalhando estilhaços. Ahmadi e algumas das crianças morreram imediatamente dentro do veículo. Outros foram mortos em quartos adjacentes, disseram membros da família. Uma autoridade afegã confirmou que três das crianças que morreram foram transportadas de ambulância no domingo.

Samia, de 21 anos, filha de Ahmadi, estava dentro de casa quando foi atingida pela onda de choque. “No início, pensei que fosse o Taleban”, disse. “Mas os próprios americanos fizeram isso.” Ela conta que cambaleou para fora, sufocando, e viu os corpos de seus irmãos e parentes. “Eu vi toda a cena”, lembra. “Havia pedaços de carne queimada por toda parte.”

Entre os mortos estava seu noivo, Ahmad Naser, de 30 anos, ex-oficial do Exército afegão e contratado pelos militares americanos. Ele tinha chegado da Província de Herat, no oeste do Afeganistão, na esperança de ser retirado de Cabul pelas forças dos EUA.

O Pentágono reconheceu a possibilidade de que pessoas tenham morrido no ataque do drone, mas garantiu que nenhum civil morreu na explosão do veículo. “Nenhum Exército na face da Terra trabalha mais para evitar vítimas civis do que os militares dos EUA”, disse John F. Kirby, principal portavoz do Departamento de Defesa. “Levamos isso muito a sério.”

No domingo, o porta-voz do Comando Central dos EUA, o capitão Bill Urban, afirmou que os militares realizaram um ataque com drones contra um carro do Isis-k, que planejava atacar o Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul. Ontem, Urban manteve a declaração de que os drones atingiram um “alvo válido”. Ele admitiu, porém, que os militares americanos estavam investigando as alegações sobre vítimas civis.

Ahmadi era técnico de engenharia do escritório local da Nutrition and Education International, ONG americana com sede em Pasadena, no Estado da Califórnia. Seus vizinhos e parentes insistiram que o engenheiro e seus parentes, muitos dos quais trabalhavam para as forças de segurança afegãs, não tinham nenhuma relação com qualquer grupo terrorista.

Ao New York Times, eles forneceram documentos que comprovam o longo vínculo de Ahmadi como funcionário da ONG americana, bem como o pedido de Naser para um visto especial de imigrante, em razão de seu serviço como guarda na base de Camp Lawton, em Herat.

“Ele era muito respeitado por seus colegas e piedoso com os pobres e necessitados”, disse Steven Kwon, presidente da ONG americana, a respeito de Ahmadi. De acordo com Kwon, o engenheiro técnico recentemente “preparou e entregou refeições à base de soja para mulheres e crianças famintas em campos de refugiados em Cabul”./ NYT

 

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Civis são vítimas do fogo cruzado

 

PARA LEMBRAR

Em setembro de 2019, um bombardeio dos EUA – que supostamente deveria atingir um esconderijo do Estado Islâmico no Afeganistão – matou 30 civis na Província de Nangarhar. O Ministério da Defesa afegão e um alto funcionário dos EUA em Cabul confirmaram o ataque com drone.

No mesmo mês, um ataque a uma festa de casamento na Província de Helmand deixou ao menos 40 convidados mortos, entre eles 12 crianças. O porta-voz das forças americanas, coronel Sonny Leggett, disse na época que as vítimas foram atingidas por tiros e explosões provocados por militantes do Taleban, os alvos da operação, segundo ele.

 

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Guerra e mudanças climáticas agravam drama do Afeganistão

 

CENÁRIO: Somini Sengupta

 

Algumas partes do Afeganistão têm registrado um aumento na temperatura que corresponde a quase o dobro da média global. As chuvas da primavera têm diminuído de forma mais preocupante em alguns dos campos agrícolas mais importantes do país. As secas estão mais frequentes em amplas faixas do país, incluindo atualmente um penoso período de seca no norte e no oeste, o segundo em três anos.

O Afeganistão personifica um novo tipo de crise internacional, onde os perigos da guerra colidem com as ameaças causadas pelas mudanças climáticas, criando um ciclo vicioso apavorante que castiga algumas das pessoas mais vulneráveis do mundo e destrói a capacidade de seus países de lidar com a situação.

E, embora seja simplista atribuir o conflito no Afeganistão às mudanças climáticas, os impactos do aumento das temperaturas agem como o que os analistas militares chamam de “multiplicadores de ameaças”, amplificando os conflitos pela água, deixando as pessoas desempregadas em um país cuja população vive em grande parte da agricultura, enquanto o próprio conflito consome atenção e recursos.

“A guerra exacerbou os impactos das mudanças climáticas. Há 10 anos, mais de 50% do orçamento nacional afegão vai para a guerra”, disse Noor Ahmad Akhundzadah, professor de hidrologia da Universidade de Cabul. “Agora, não há governo e o futuro é incerto. Nossa situação atual é completamente desesperadora.”

Um terço de todos os afegãos enfrenta o que a ONU chama de níveis de crise de insegurança alimentar. Por causa dos conflitos, muitas pessoas não puderam cuidar de suas lavouras no tempo correto. E, em razão da seca, a colheita deste ano será ruim. O Programa Mundial de Alimentos da ONU diz que 40% das safras foram perdidas, o preço do trigo subiu 25% e o estoque de alimentos da própria agência humanitária deve acabar até o fim de setembro.

O Afeganistão não é o único país a enfrentar tal combinação de infortúnios. Das 25 nações do mundo mais vulneráveis às mudanças climáticas, mais da metade é impactada por conflitos ou instabilidade social, de acordo com o índice desenvolvido da Universidade de Notre Dame.

Na Somália, que sofre os impactos de décadas de conflito, o número de eventos climáticos extremos triplicou desde 1990, em comparação com o período anterior de 20 anos. Na Síria, uma seca prolongada, tornada mais provável pela mudança climática causada pelo homem, de acordo com pesquisadores, fez com que as pessoas saíssem das áreas rurais e alimentou as queixas latentes contra o governo, que provocaram protestos, em 2011 e, em última análise, a uma verdadeira guerra civil.

Os dados sobre o clima são escassos para o Afeganistão. Mas uma análise recente, com base nos poucos dados existentes, sugere que uma diminuição nas chuvas já afetou grande parte do país, mas de forma mais intensa no norte, onde os agricultores e pecuaristas dependem quase completamente das chuvas para irrigar suas plantações e dar água para seus rebanhos.

“Os efeitos da seca prolongada são agravados pelo conflito e pela pandemia de covid19 em um contexto em que metade da população já precisava de ajuda”, disse o representante adjunto do secretário-geral da ONU no Afeganistão, Ramiz Alakbarov. /TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA