Título: Missões de paz vivem um dilema
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 14/09/2005, Internacional, p. A9

O major jordaniano Mohamad al Shawabkeh observa a capital haitiana por trás da base da ONU, de olho nos tiroteios na favela de Cité Soleil. Sem helicópteros e tropas treinadas em guerra urbana - só o contingente brasileiro a teria -, al Shawabkeh não pode tomar a área. Seus soldados se limitam a vigiá-la a partir da fortificação que domina o bairro onde vivem 500 mil pessoas e montar bloqueios na rua.

Os jordanianos, como muitas tropas de paz da ONU em todo o mundo, se ressentem da falta de meios militares. Enquanto o número de ações cresceu de 5 para 16 desde o fim da Guerra Fria, a maior parte do contingente é fornecido por países em desenvolvimento que não possuem tecnologias avançadas e forças especializadas.

- Deviam resolver isso - reclama o subsecretário-geral Jean Marie Guehenno, que dirige as operações de paz. - Quando se ampliam as missões, a parte logística deveria seguir. Nada pode ser pior do que muitas ações sem recursos - completa.

Os governos dos EUA e europeus, detentores tanto de tecnologia quanto de tropas, são só 7% dos quase 68 mil soldados e policiais que usam o capacete azul da ONU em todo o mundo. O secretário-geral, Kofi Annan, pediu apoio ao presidente George Bush e a 149 outros líderes reunidos esta semana em Nova York. Em relatório encaminhado à Assembléia Geral em março, Annan afirmou que havia urgência em criar uma ''reserva estratégica'' de tropas de paz para rápido deslocamento.

Como missão, os soldados guardam a estabilidade política e as reservas de diamantes, ouro, óleo e outros recursos na República Democrática do Congo, Costa do Marfim, Sudão e Libéria, tanto quanto barram a ameaça de que países da África Central possam se tornar o santuário de grupos terroristas como a Al Qaeda. No Haiti, autoridades da ONU afirmam que a credibilidade das eleições este ano depende de a força de estabilização comandada pelo Brasil tomar Cité Soleil. Ontem mesmo, em mais uma operação no local, os soldados prenderam vários suspeitos de ligação com as gangues.

Atoki Ileka, embaixador do Congo, diz que empresas regularmente o procuram interessadas em extrair minério no país. Mas afirmam que só investirão quando as milícias que dominam a parte oriental forem derrotadas e as eleições previstas para 2006 tiverem ocorrido. Neste caso, ainda de acordo com Ileka, as duas tarefas dependem da ONU.

Não é fácil. No Norte do país, fuzis AK-47 e morteiros são contrabandeados de Uganda através do lago Albert para as gangues que dominam a exploração ilegal de diamantes. Soldados da ONU não contam com barcos-patrulha equipados para agir à noite ou número suficiente de homens e, assim, o fluxo de armas não é interrompido.

- A área de operações é tão grande que os 28 helicópteros que temos não são suficientes para ajudar a garantir os registros eleitorais, quanto mais para empreender manobras militares - analisa, de Kisangani, o general holandês Patrick Cammaert, chefe da Brigada Ituribi, no Leste do Congo. - Enviamos uma lista em abril com mais aeronaves e equipamentos de inteligência como um avião-robô. Não recebi resposta até agora, estamos aqui pisando em ovos - avalia, sendo corroborado por um especialista.

- Se os americanos não querem fazer, deviam deixar que a ONU fizesse. Missões como a do Congo estão montadas sobre gelo muito fino - analisa Seth Jones, co-autor de uma análise do sistema de tropas da ONU encomendado pela Rand Corporation, organização americana que atua em segurança. - Há motivos para preocupação quanto à falta de capacidade militar.

Durante a Guerra Fria, EUA e URSS interviam em suas áreas de influência. Quando esta acabou, tropas americanas, britânicas, francesas e de outras nações européias serviram sob comando da ONU no Haiti, Kosovo, Serra Leoa e Somália. Guehenno afirma que as potências reduziram seu papel após fracassos como no Haiti, entre 1993 e 1997, e Somália, entre 1992 e 1995. Ao mesmo tempo, as operações de paz foram ampliadas e passaram a incluir a ajuda ao registro de eleitores e ajuda humanitária.

- O que vemos é o reflexo do trauma que a atuação nos anos 90 deixou nesses países - afirma Guehenno. - As potências adotaram um novo formato, de chegar rápido e sair rápido. Relutam em se comprometer por períodos mais longos.

Os EUA pressionam pela redução das missões. Philo Dibble, subsecretário de Estado para assuntos ligados a operações assim, diz que, em tese, o país apóia a todas, mas limitando-se à ajuda logística. Esse trabalho representa 27% do orçamento para as missões de paz, de US$ 5 bilhões. Dibble adianta que o pedido de tropas para o Congo, feito por Annan, não será aceito.

Até agora, apenas o Paquistão respondeu ao plano da reserva estratégica, com mil soldados disponíveis em três meses. Mas, segundo o embaixador Munir Akram, a tropa corre risco por usar ''aviões e helicópteros russos (da ONU) velhos e perigosos''. A mesma queixa foi encaminhada pelo Sudão e pelo Haiti. O general Fazle Akbar, de Bangladesh, chefia as tropas em Cartum e diz que só recebeu 1.500 dos 10 mil soldados previstos por falta de engenheiros que construam bases para instalá-los. Os desembarques em Darfur, essenciais para cumprir o acordo que encerrou 20 anos de guerra civil no país, estão dois meses atrasados.