Título: Lula foge da sua sombra
Autor: Villas-Bôas Corrêa
Fonte: Jornal do Brasil, 14/09/2005, Outras Opiniões, p. A13

O presidente Lula fechou com chave de ouro do almoço com o presidente da Guatemala, Oscar Berger, a sua visita de 24 horas ao país que o recepcionou com um emocionante programa de solenidades, a começar pela reunião dos chefes de Estado e de governo e dos chanceleres dos países do Sistema de Integração Centro-Americana (SICA) e do Brasil, que se encontraram, em seguida, para o debate não se sabe exatamente sobre que transcendentais temas. Para não desperdiçar a oportunidade dourada, Lula discursou na pomposa solenidade de encerramento do histórico encontro. E, digerindo os comes e bebes da cozinha guatemalense embarcou no avião especial da FAB para o vôo até Nova York e o brilhareco na reunião da Assembléia-Geral da ONU, com a sedutora agenda da discussão das Metas do Milênio, além da imperdível reunião paralela sobre financiamento para o desenvolvimento. Completa-se a estafante maratona com a reunião dos presidentes dos países-membros do Conselho de Segurança da ONU e, para relaxar as tensões, o almoço oferecido aos chefes de Estado e de governo, com o arremate impecável da declaração à imprensa sobre o programa Ação contra a Fome e a Pobreza.

Depois da noite de sono reparador, o presidente participa de encontros bilaterais com outros chefes de Estado e empresários e, como não há bem que sempre dure, retorna ao Brasil onde o espera a provação da crise da roubalheira e seus imprevisíveis próximos capítulos.

Não se podem negar as habilidades presidenciais em aproveitar as ocasiões e inventar pretextos para fugir da própria sombra, que o persegue como fantasma a povoar sofridas insônias com os intervalos de sono sobressaltado pelos pesadelos. Atento e solícito, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, acode com as informações que justificam ausências e escapadelas, oferecendo a cobertura pronta e ampla como barraca de praia: ''A demanda de Lula é maior do que a oferta de Lula''. Traduzindo a metáfora que força a semelhança do retumbante sucesso de Lula nos palcos do mundo com os lances de leilão, o recado avisa que entre os giros internacionais e os roteiros domésticos, o presidente passará em Brasília o menor tempo possível.

Não deixará, todavia, o povo remoendo as saudades do seu líder. À falta de auditórios seletos, em que não corra o risco da zoada das vaias, dobrou a dose do programa ''Café com o presidente'' que passou de quinzenal para todas às segundas-feiras. Com tal prudente astúcia não necessitará submeter os companheiros fiéis e obsequiosos ao constrangimento de contratar claques, a tanto por cabeça, para os aplausos no estilo de programas de auditório.

Reconheça-se que o presidente tem lá seus motivos para ficar longe de Brasília sempre que tiver uma boa ou razoável desculpa. Lá só o esperam aborrecimentos, problemas, chateações. Quando não o aperreiam com as encrencas do governo, batem à porta do seu gabinete os escândalos sem fim do mensalão, do caixa dois, ecos das muretas petistas para o financiamento da sua campanha e da esbórnia dos saques no cofre da Viúva, com o descarado desvio do dinheiro público. Ora, Lula não sabe administrar nem se ajusta à rotina burocrática. Queixa-se um ministro, no sussurro do anonimato, que desistiu de tentar despachar assuntos da sua pasta com o presidente porque ''ele nunca está sozinho em seu gabinete''.

Depois que o deputado José Dirceu despediu-se da chefia da Casa Civil, tangido pelas denúncias de envolvimento no esquema de assalto petista, a substituta, ministra Dilma Rousseff, gerencia o abacaxi buscando impor um mínimo de ordem e eficiência no monstrengo de 36 ministros e secretários. E como não conseguiu descobrir programas, projetos, planos, obras em andamento, nas suas raras entrevistas escapa pela tangente dos temas gerais.

O mesmo truque de Lula nos improvisos para as platéias locais. Esgotado o repertório repetitivo dos escassos êxitos do Fome Zero, do desempenho da economia que não mexe com o bolso do povão, passou a inaugurar um novo governo a cada discurso, prometendo milagres no quarto e último ano do mandato: da transposição da águas do São Francisco para inundar o Nordeste à recuperação da malha rodoviária em pandarecos.

Inútil dissimulação: a crise da corrupção é do governo, do seu partido de descorada bandeira vermelha, da quadrilha que desviou milhões de recursos públicos para a montagem da paranóia de vinte anos de fruição do poder.

''Ninguém foge ao seu destino'' - choraminga Orlando Silva na valsa Deusa do Cassino, de Newton Teixeira e Torres Homem. Nem do seu destino nem da sua sombra, da crise que é do governo, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT e de seus aliados.

Inclusive do presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti, ora prostrado na berlinda.