O Estado de S. Paulo, n. 46713, 09/09/2021. Internacional, p. A16

Saída do Afeganistão altera de vez foco da política dos EUA para o Leste da Ásia
Luiz Raatz


Sinalizada ainda no governo de Barack Obama, sob o nome de "Giro para a Ásia", a estratégia geopolítica americana para o século 21, de confrontar a ascensão da China como superpotência, está na raiz da retirada do Afeganistão, que marca os 20 anos do aniversário dos ataques do 11 de Setembro.

A necessidade de encontrar soluções energéticas para conter a mudança climática e de fazer frente aos avanços tecnológicos chineses, principalmente no 5G, acelerou esse processo, com o Oriente Médio perdendo espaço para o Leste da Ásia nas cabeças pensantes da política externa americana.

Em setembro de 2001, os EUA viviam o auge do período chamado "fim da história", como Francis Fukuyama retrataria o mundo após a Guerra Fria, com o triunfo da democracia liberal sobre os países comunistas. Washington era a única superpotência mundial e a ascensão de grupos jihadistas no Oriente Médio representava uma ameaça a seus interesses.

Um desses grupos, a Al-qaeda, de Osama Bin Laden, treinou militantes no Afeganistão para o pior ataque em solo americano desde Pearl Harbour. A resposta aos atentados ampliou o envolvimento americano no Oriente Médio, com invasões de Afeganistão e Iraque, e um jogo de gato e rato com o Irã para conter seu programa nuclear, além do apoio a Israel contra Hamas e Hezbollah.

A chegada da Primavera Árabe trouxe a guerra civil síria e a ascensão do califado do Estado Islâmico, que exigiu mais envolvimento americano na região. Enquanto a superpotência voltava seus olhos para o Oriente Médio, a China crescia, alimentando um ciclo de commodities e estendendo seu parque industrial e tecnológico.

Fukuyama lembrou recentemente, em artigo publicado no Estadão, que a crise financeira global de 2008 representou o primeiro baque do status quo que vigorava desde 1989. O reconhecimento pelo painel da ONU de que as mudanças climáticas são irreversíveis e as posteriores negociações para o acordo de Paris agravaram esse cenário.

"Sob qualquer métrica analisada – população, produção industrial, gastos militares –, o Extremo Oriente deve ficar cada vez mais importante", explica Ali Wyne, da consultoria de risco Eurasia. "O envolvimento americano no Oriente Médio impediu os EUA de se concentrar na ascensão da China, que julga ser seu principal competidor estratégico neste século.

Com isso, intervenções nos moldes do Iraque e Afeganistão se tornarão mais raras."

Para Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais da FAAP, o retorno ao mundo bipolar, com o antagonismo cada vez mais marcado entre Pequim e Washington, deve dar a tônica das próximas décadas.

"Essa disputa geopolítica se manifesta em diversos campos, e certamente na disputa energética. E também em campos novos, como a guerra cibernética, a disputa tecnológica, com a questão do 5G. Tudo isso será influenciado por essa reconfiguração do sistema internacional", explica. "A mudança da matriz energética, que cedo ou tarde vai acontecer, certamente diminui a importância estratégica do Oriente Médio, o que leva um pouco a essa reorientação da política americana com disputas mais amplas com a China."

A ascensão chinesa, calcada em pesados investimentos em pesquisa e desenvolvimento, encurtaram a distância de Pequim para os EUA nos últimos anos. Somente em 2020, o valor investido pelos chineses para encontrar novas soluções tecnológicas em um mundo marcado pelo avanço em robótica e Inteligência Artificial chegou a US$ 378 bilhões – um recorde equivalente a 2,4% do PIB do país, segundo o governo local. Este ano, a expectativa é a de que a China supere os EUA nesse quesito, de acordo com dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE).

Atrás na corrida, os EUA buscam recuperar o prejuízo. No front diplomático, os americanos pressionam aliados, entre eles o Brasil, a não adotar tecnologias chinesas em suas redes 5G. Do outro, buscam acelerar o investimento. A meta do presidente Joe Biden é que esse volume cresça 9% nos próximos anos, segundo a proposta de orçamento de 2022. Em 20 anos, só a Guerra do Afeganistão drenou US$ 825 bilhões, segundo o Pentágono.

Para isso, era consenso entre republicanos e democratas deixar de gastar recursos humanos e materiais no Oriente Médio, ressaltam analistas. Em parte graças ao isolacionismo do então presidente Donald Trump, os EUA deixaram a Síria e prepararam a retirada das tropas do Afeganistão, concluída por Biden.

A meta do democrata é olhar para o futuro – e para Pequim. A principal agenda legislativa de Biden este ano é o pacote de infraestrutura, aprovado no mês passado. Ontem, o presidente americano anunciou uma ambiciosa meta de garantir ao menos 50% da matriz energética americana com energia solar (mais informações no caderno de Economia).

Hoje, a energia limpa nos EUA corresponde a 18% da matriz, um ganho de apenas 5 pontos porcentuais desde 2008. Na China, esse esforço começou bem antes. Entre 2008 e 2020, a porcentagem de energia renovável na matriz chinesa saltou de 17% para 27%.

Mudança

Sob qualquer métrica analisada – população, produção industrial, gastos militares –, o Extremo Oriente deve ficar cada vez mais importante"

Ali Wyne

Analista da Consultoria de Risco Eurasia