Título: A sangria não pode acabar
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 15/09/2005, Opinião, p. A10

Voltando a exibir a histriônica teatralidade com a qual roubou a cena no triste espetáculo de um Congresso apodrecido, o deputado Roberto Jefferson, o responsável pelo maior abalo do governo Lula, teve ontem seu mandato cassado pelo plenário da Câmara. O cheque do ''mensalinho'', a prova material que faltava, enfim apareceu, engordando a conta de problemas do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti. Seis petistas incluídos na lista dos 18 ''cassáveis'' conseguiram liminar no Supremo Tribunal Federal - na prática, um salvo-conduto que lhes oferece uma razoável sobrevida política e os livra temporariamente da necessidade de renúncia ao mandato. Conjugados num só dia, tais eventos constituem um novo ato de uma produção de caráter épico para a história do Brasil: um momento em que o país busca lancetar os tumores da corrupção espalhada pelos corredores do poder, enquanto patifes tentam unir-se na determinação de preservar as vantagens adquiridas por meio de práticas abomináveis. A sangria, sublinhe-se, não pode acabar. Desde o estrondo inicial da atual crise, e mais ainda daqui para frente, a população rechaçará qualquer intenção de estancar o processo de faxina da política brasileira. Se Congresso, governo e Justiça se associarem à idéia de que é preciso segurar o vazamento para salvar o dique (sob o enganoso argumento de ameaça à perda de controle dos próximos atos, com frituras sobre a estabilidade institucional), correm o risco de darem um tiro no pé. A instabilidade, hoje, tem nome: a impunidade. Generaliza-se, afinal, o sentimento de derrota e choque moral de eleitores, frustrados com o descaso, a paralisia e, sobretudo, a sucessão de escândalos que atormenta todos os poderes e inquieta os cidadãos.

De Severino Cavalcanti, parece desnecessário oferecer comentários adicionais. Trata-se de um moribundo político. Ele tem razões para, juridicamente, questionar as evidências materiais apresentadas pelo empresário que tentou comprá-lo (como a divergência de datas para a emissão do cheque vindo ontem a público). No plano político, no entanto, sua falta de legitimidade ultrapassou as fronteiras do despreparo com que revelou conduzir a Câmara. Superou também eventual preconceito contra suas origens. Severino atingiu o status de insulto à nação. Ao seu lado não pode ser esquecido o deputado Roberto Jefferson, o bufão que se tornou o personagem principal do ''mensalão'' - a odiosa propina distribuída a parlamentares para votar projetos de interesse do Palácio do Planalto. A ambos convém adicionar a lista de deputados sugeridos para serem cassados - que exercerão seu direito de defesa no Supremo, instância capaz de resolver pendências que afetam a legalidade.

Os escombros deixados pelo vendaval que atingiu a política nos últimos meses exigirão ainda um empenho notável do presidente Lula, dos integrantes de seu governo e seus aliados. É inadmissível, por exemplo, que em pleno ambiente de desencanto e inconformismo de parcela crescente da população, o presidente dedique tempo e desperdice humor para fazer boutade a respeito dos equívocos éticos do próprio partido. Questionado sobre o uso de dinheiro do Fundo Partidário pelo PT para pagar passagens aéreas de parentes, fingiu ignorância e fez piada. Ao agir assim, despreza as aflições de políticos de bem que integram uma sigla politicamente arruinada. E nada contribui na condução de um país cujas esperanças estão hoje centradas numa prática simples, mas de difícil alcance: que os foras-da-lei sejam remetidos à delegacia mais próxima.