O Globo, n. 32734, 22/03/2023. Economia, p. 16

Lula quer ir ao STF por regra de venda da Eletrobras

Malu Gaspar
Renan Monteiro
Vitor da costa


A Casa Civil e a Advocacia Geral da União (AGU) planejam uma ofensiva jurídica para modificar o estatuto da Eletrobras e garantir mais poder ao governo na companhia. Técnicos dos ministérios trabalham na elaboração de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) a ser apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) para modificar regra do estatuto da Eletrobras.

O objetivo da ação, encomenda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é derrubar o dispositivo que estabelece que qualquer acionista tem no máximo 10% do poder de voto nas assembleias, mesmo que tenha participação maior na empresa. Isso inclui a União, que tem 42,6% das ações.

— O que foi feito na Eletrobras foi crime de lesa-pátria. Privatizar uma empresa daquele porte. Utilizou o dinheiro para quê? É como se você tivesse a sua casa, e devendo para mim, você resolvesse vender a sua casa para pagar sua dívida. Você iria ficar com o que na vida? Uma empresa como a Eletrobras é um patrimônio desse país, exige muita responsabilidade —afirmou Lula em entrevista à TV 247 e acrescentou que o governo espera voltar a ser “dono” da empresa.

Lula afirma que o processo de privatização não trouxe benefícios à população brasileira, como a diminuição no preço da energia elétrica:

— Embora o governo tenha 40% das ações, só participa na votação com 10%. E se o governo quiser comprar ações, tem que pagar o triplo do preço que paga uma outra empresa. Foi feito para proibir a gente de tomá-la de volta (...) Não vai ficar por isso. Nós estamos entrando na Justiça.

Ferramenta política

Na ação que avalia apresentar ao Supremo, o governo pretende argumentar que o limite de 10% é inconstitucional.

O limite foi estabelecido na lei da privatização da Eletrobras, aprovada no Congresso, e incluído no estatuto da companhia — privatizada em junho de 2022, em uma negociação pela qual investidores pagaram R$ 33,7 bilhões.

Ao longo das negociações para a privatização, ficou claro que transformar a companhia numa corporation — ou seja, empresa sem um controlador definido —seria uma das condições para atrair investidores e fazer o negócio deslanchar.

Outra foi a inclusão, no estatuto, de uma proteção contra estatizar novamente a empresa via poison pill, a pílula de veneno, no jargão do mercado. Por esse instrumento, caso queira seguir esse caminho, o governo precisa pagar o triplo do valor das ações.

Com as declarações de Lula, as ações da Eletrobras com voto caíram 3,48% ontem. As sem voto recuaram 3,37%.

— Isso teve impacto nas ações. Mas é muito difícil um acionista só mudar o estatuto da companhia. E desde que ela foi privatizada, o governo teve sua participação diluída —comenta Rafael Bombini, assessor da DOM Investimentos.

Bruno Komura, analista da Ouro Preto Investimentos, diz que os desdobramentos podem afetar o desempenho dos papéis:

— O poder de voto limitado a 10% ajuda na governança e em frear tentativas de intervenção, mas, caso esta regra seja quebrada, podemos ver a companhia ser utilizada como ferramenta política e isso certamente pressionaria as ações.

Quando a lei da privatização era discutida no Tribunal de Contas da União, Lula chegou a telefonar para dois ministros da Corte para dizer que, se fosse eleito, reverteria o negócio.

Durante a campanha eleitoral, o então candidato criticou a privatização e, na transição, o grupo de trabalho de Minas e Energia estudou formas de reverter o negócio.

A constatação de que recomprar a empresa seria caro demais fez o governo se concentrar no teto para exercício do poder de voto. Só que, como o dispositivo foi criado por lei no Congresso, a única forma de derrubá-lo seria aprovar outra lei ou recorrer ao STF.

Empecilhos nos planos

A solução via STF, porém, deve esbarrar em empecilhos. Um deles é o risco de o processo parar nas mãos do ministro Kassio Nunes Marques, que já é relator de ações que contestam a venda da estatal após a aprovação da medida pelo Congresso e a sanção por Jair Bolsonaro. Se o STF decidir que todas as ações sobre o assunto vão para Nunes Marques, por prevenção, o governo deve encontrar resistência.

Isso porque os movimentos do ministro até agora foram favoráveis à privatização —como, por exemplo, o de simplesmente não dar nenhuma liminar para parar o processo. Fora isso, Nunes Marques pediu informações e deu andamento burocrático aos pedidos, mas não colocou nenhum obstáculo à privatização.

Nunes Marques é considerado, dentro e fora do STF, o magistrado mais alinhado aos interesses de Jair Bolsonaro, que o nomeou para o tribunal.

Para complicar a vida do governo, dois ministros vistos como mais alinhados à agenda esquerdista na economia — Rosa Weber e Ricardo Lewandowski —estão de fora da distribuição de processos do tipo.

Rosa, que é presidente da Corte, não recebe ações dessa natureza no período em que comanda o tribunal. E Lewandowski, por estar próximo da aposentadoria, já está excluído da distribuição diária de novos processos que chegam ao STF.

Por isso, um plano B poderia ser entrar com ação civil pública na Justiça Federal, buscando uma solução na primeira instância. Não é, porém, muito promissor, já que o risco de uma decisão pró-governo ser alvo de recursos e ter que voltar para o STF é grande.