O Estado de São Paulo, n. 46753, 19/10/2021. Política p.A6

 

 

Em sua reta final, CPI expõe histórias dramáticas de vítimas na pandemia

 

Senadores ouvem relatos emocionados de pessoas que perderam familiares para o coronavírus; depoentes culpam governo Bolsonaro e cobram relatório duro da comissão

Lauriberto Pompeu

Marcelo de Moraes

No dia em que o bate-boca político deu lugar à vida real na CPI da Covid, depoimentos de quem perdeu parentes pela doença provocaram emoção na sala de sessões do Senado onde durante seis meses opositores do governo e aliados do presidente Jair Bolsonaro protagonizaram diversos embates. Ontem, por quase quatro horas, senadores ouviram relatos dramáticos de quatro mulheres e três homens que viveram uma guerra, mas foram derrotados pelo coronavírus.

Os depoimentos demonstraram a dor da impotência diante da doença que já tirou mais de 600 mil vidas no País. Em comum, todos apontaram a responsabilidade do governo Bolsonaro pela falta de vacinas, que levou o Brasil a uma situação de descontrole no combate à pandemia. Cobraram da CPI um relatório duro, que mostre as falhas da gestão federal. Giovanna Gomes Mendes da Silva, estudante de 19 anos, perdeu o pai e a mãe em duas semanas e teve de virar chefe de família, cuidando da irmã oito anos mais nova. "Eu, meus pais e minha irmã éramos muito unidos. Quando meus pais faleceram, a gente perdeu as pessoas que a gente mais amava. A gente não perdeu só os pais, a gente perdeu uma vida. Uma vida de alegria", disse, com a voz embargada. Ao ouvir Giovanna contar que pediu a guarda da irmã, após a morte dos pais, o intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais) que fazia a tradução do depoimento chorou. Foi substituído por um colega.

O taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva, que perdeu um filho para o coronavírus, afirmou ter sentido uma dor "no coração" ao ouvir o presidente Jair Bolsonaro perguntar "E daí? Quer que eu faça o quê?", em abril do ano passado, quando as mortes por covid haviam ultrapassado a marca de 5 mil. "Eu escutei lá no meu coração: 'E daí que seu filho morreu?'. Isso me gerou muita raiva, muito ódio. Isso me fez muito mal", desabafou Márcio Antônio. "Eu daria a minha vida para o meu filho ter chance de ter se vacinado. Não tinha perspectiva de vacina ainda. Sabe, não tinha ainda máscara", completou o taxista, que também viu a irmã morrer de covid. "Quero que alguém me faça entender por que lutar contra máscara, que salva vidas? Por que lutar contra a vacina?"

MANAUS. A exemplo de Márcio Antônio, a enfermeira Mayra Pires Lima, do Amazonas, perdeu a irmã para a doença. À CPI, Mayra contou o drama da escassez de equipamentos durante a crise de oxigênio em Manaus, em janeiro deste ano. "Eu tinha um grande sonho de ajudar as grandes calamidades, conhecer outros países que precisam de ajuda e talvez atender pacientes em situações de guerra", afirmou. "Hoje eu falo que eu vivi uma guerra, porque atendi pacientes muitas vezes sem proteção nenhuma." Fundador da Organização Não Governamental (ONG) Rio de Paz, Antonio Carlos Alves de Sá afirmou aos senadores que Bolsonaro nunca demonstrou compaixão pelas pessoas que enfrentavam a tragédia. "O que vimos foi a antítese de tudo o que se esperava de um presidente da República", Governo A estratégia do Planalto é desqualificar as acusações e carimbá-las como sendo 'eleitorais' criticou. Na mesma linha, Arquivaldo Bites Leão Leite, que perdeu dois primos, um tio e um irmão para o coronavírus, além de ter tido a doença e sofrer as sequelas, disse que Bolsonaro provocou um "genocídio premeditado".

BOLSONARO. Enquanto a sessão transcorria, Bolsonaro publicou um vídeo antigo, ao lado da médica Mayra Pinheiro, conhecida como "Capitã Cloroquina". Na postagem, ele dá os parabéns à representante da classe pelo Dia do Médico. Secretária de Gestão do Trabalho e Educação do Ministério da Saúde, Mayra ganhou o apelido por defender o medicamento ineficaz no tratamento do coronavírus, prática que foi considerada criminosa pela CPI.

No relatório final da CPI, antecipado pelo Estadão, o senador Renan Calheiros (MDBAL) propôs a criação de um memorial em homenagem às vítimas da covid. "Nós nunca esqueceremos", escreveu ele.

Há também a sugestão de criar uma pensão para órfãos da pandemia. A leitura do relatório estava marcada para hoje, mas, após a reportagem revelar o teor do documento – que acusa o governo de agir com "dolo" na condução da crise sanitária –, a entrega foi adiada para amanhã e a votação ocorrerá somente na próxima semana. O vazamento do relatório provocou mal estar na comissão. O desconforto foi exposto pelo presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM). A principal divergência diz respeito à acusação de genocídio contra indígenas, imputada a Bolsonaro. De qualquer forma, apesar de integrantes do G7 – como ficou conhecido o grupo majoritário da CPI – discordarem de trechos do parecer de Renan –, o Palácio do Planalto admite que não há como impedir a apresentação de um relatório contundente contra o governo. 

A ideia do Planalto é desqualificar as acusações e carimbálas como sendo de cunho político e eleitoral. Ou como "relatório do Lula", segundo definiu um aliado muito próximo de Bolsonaro, citando a ligação política entre Renan e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas de intenção de voto para a eleição de 2022.

DISPUTA. A discórdia entre integrantes da CPI envolve uma disputa por espaço político. Na prática, a antecipação do relatório de Renan foi considerada por membros do G7, especialmente por Aziz, como uma quebra de compromisso. Pelo acordo alinhavado anteriormente, o relatório final receberia contribuições do grupo antes de ser apresentado. Os senadores acham que Renan quis criar a política do "fato consumado".

"Tudo que o Brasil não deseja, não espera e não aceita é que essa CPI, depois de ter dado uma contribuição histórica fundamental ao País, termine numa disputa de vaidades", disse o senador Humberto Costa (PT-PE). Senadores do G-7 avaliam que uma "mão pesada demais" no texto dá munição para o governo alegar que o relatório é político.

"O que estamos testemunhando é algo macabro, triste e lamentável. Pessoas foram escolhidas a dedo para virem para a CPI e falarem mal do presidente Bolsonaro", protestou ontem o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-rj), filho "01" do presidente.