O Estado de São Paulo, n. 46754, 20/10/2021. Política p.A10

 

Relatório da Covid atribui 9 crimes a Bolsonaro e pede indiciamento de 72

 

Procurador-geral da República diz que decide em 30 dias se processa Bolsonaro e outros citados assim que relatório for aprovado; documento ainda pode ser atualizado

Julia Affonso

André Shalders

O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, do Senado, não acusará o presidente Jair Bolsonaro de homicídio qualificado nem de genocídio contra as populações indígenas. O indiciamento do presidente por estes dois crimes estava presente na minuta mais recente do relatório final preparado por Renan Calheiros (MDB-AL), mas os senadores do chamado "G7" da CPI fecharam um acordo para remover os dois crimes durante uma reunião na noite de ontem.

A reunião noturna na casa de Tasso Jereissati (PSDB-CE) também terminou com a remoção de uma acusação contra o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-rj). Ele foi poupado da acusação de advocacia administrativa, por supostamente ter atuado a favor da empresa Precisa Medicamentos. No entanto, continuará sendo acusado de incitação ao crime por comandar a estrutura de propagação de notícias falsas, junto com o pai. A mesma acusação está mantida para os outros dois filhos do presidente com carreira política, Carlos e Eduardo. "Foi tudo bem e está refeita a convergência", disse Renan ao Estadão.

A minuta do parecer final do relator é farta em evidências para sustentar a argumentação do parlamentar sobre como o País acumulou mais de 600 mil mortes pela doença. A última versão reúne falas negacionistas do presidente Jair Bolsonaro, fotos, vídeos, conversas de Whatsapp e e-mail, relatórios de inteligência financeira do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), fluxogramas de transferências milionárias e documentos. O relatório, revelado pelo Estadão no domingo, pode passar por atualizações. São atribuídos 9 crimes a Bolsonaro e há 72 pedidos de indiciamento. A votação do parecer está marcada para a terça-feira, 26. Após a aprovação, o procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que analisa em 30 dias se processa Bolsonaro e outros citados. Veja os principais indícios:

GABINETE PARALELO.

Um vídeo, de setembro de 2020, mostra reunião do grupo "Médicos pela Vida", formado por profissionais pró-tratamento precoce. Participaram Nise Yamaguchi e o virologista Paolo Zanotto. Na ocasião, ele sugeriu a criação de um "shadow cabinet", sem exposição dos integrantes, para aconselhar o governo sobre vacinas contra o coronavírus. Registros de companhias aéreas mostram que Yamaguchi fez quinze viagens a Brasília entre março de 2020 a maio de 2021. O Ministério da Saúde pagou diárias e passagens de uma viagem.

IMUNIDADE DE REBANHO.

Há uma comunicação diplomática de outubro de 2020 entre o embaixador brasileiro Sérgio Eduardo Moreira Lima e o professor Nicolai Petrovsky, diretor da empresa australiana Vaxine. Na ocasião, o Brasil solicitou informações sobre a vacina, mas, segundo o relatório, o Itamaraty parecia buscar dados sobre a imunidade de rebanho no exterior. São também mencionadas três "lives" nas quais Bolsonaro defende a imunidade de rebanho. Numa delas, disse que o país só ficaria "livre do vírus" com 70% da população infectada.

TRATAMENTO PRECOCE.

O relatório apresenta fotos do presidente fazendo propaganda dos remédios e cita uma live de Bolsonaro com o então ministro da Saúde Eduardo Pazuello, em que presidente o questiona sobre o tratamento e ele diz que "está funcionando". Mais de 80 telegramas mostram iniciativas do Itamaraty junto ao governo indiano para liberação de importação de IFA de hidroxicloroquina, em fins de semana ou fora do expediente.

ISOLAMENTO SOCIAL.

Em março do ano passado, Bolsonaro conclamou a população para voltar "à normalidade" e criticou autoridades estaduais e municipais por um suposto "confinamento em massa". Também são mencionados vetos a dispositivos que tratavam do uso de máscaras e álcool em gel. Há fotografias e vídeos do presidente aglomerando em motociatas e aeroportos, e até retirando máscara de criança.

VACINAS.

E-mails mostram que o governo não respondeu a sete propostas de compra da vacina da Pfizer e permaneceu em silêncio de agosto até novembro de 2020. O texto cita ainda que o governo ignorou pedidos de apoio feitos pelo Instituto Butantan para estudos clínicos (R$ 85 milhões) e construção de uma nova fábrica para produção de cem milhões de vacinas/ano (R$ 60 milhões). Documentos mostram que o governo só comprou 10% do total de doses permitidas ao Brasil pela iniciativa Covax Facility, da OMS.

MANAUS.

O texto registra um alerta da White Martins ao governo estadual, em janeiro de 2021, de que seria necessário contratar mais oxigênio de outro fornecedor. O texto lembra que Pazuello afirmou ter sido informado em 10 de janeiro de 2021 sobre a possibilidade de desabastecimento de oxigênio. À comissão, Mayra Pinheiro disse que, em 8 de janeiro, o risco era de conhecimento do então ministro. O relator cita que o aplicativo Tratecov, que recomendava medicamentos ineficazes, foi lançado na crise de Manaus, e que a Força Nacional do SUS listou, como ação estratégica, o envio de 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina.

COVAXIN.

São listadas as irregularidades na contratação, como tentativa de pagamento 100% antecipado à empresa Madison Biotech, em Cingapura. O texto cita o relato do servidor da Saúde Luis Ricardo Miranda, que disse ter sofrido pressão para compra dessa vacina. Um arquivo de texto apreendido em um computador da Precisa aponta que a empresa negociou o porcentual de comissionamento.

FAKE NEWS.

O documento incluiu 61 repetições públicas da frase "Eu sou uma prova viva (da eficácia do tratamento precoce)" por Bolsonaro e também centenas de posts negacionistas de seus filhos, de aliados e de blogs e perfis bolsonaristas.

 

Relatório 

1.178
páginas tem a última versão do relatório final.

70
é o número de pessoas indiciadas, além de dois pedidos contra empresas.

3
é o número de pessoas indiciadas por homicídio qualificado: o presidente Jair Bolsonaro, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e ex-secretário executivo da Saúde, coronel Elcio Franco.

380
menções há no texto ao presidente Bolsonaro.