O Estado de São Paulo, n. 46757, 23/10/2021. Internacional p.A20

 

A nova crise global de energia

 

Fareed Zakaria

 

A humilhante retirada do Afeganistão ecoa a derrota americana no Vietnã. Os preços estão aumentando mesmo com o crescimento econômico cada vez mais estagnado. Na época, a potência em ascensão que ameaçava a superioridade dos EUA era o Japão. Agora, é a China. Mas, submetidas a um exame mais detalhado, a maioria dessas analogias se revela superficial. Há uma, no entanto, em que os paralelos são notáveis, e isso deveria preocupar muito o governo Biden. Estamos nos encaminhando para uma crise global de energia.

O preço da gasolina nos EUA aumentou mais de 50% nos últimos 12 meses. O preço do gás natural na Europa aumentou espantosamente, quase 500%, ao longo do mesmo período. Na Ásia, a Bloomberg News informa que empresas de energia estão comprando gás natural líquido a preços recordes na tentativa de garantir o estoque.

Na Europa, uma produtora de fertilizante em massa já foi obrigada a fechar temporariamente duas instalações na Grãbretanha por causa do alto custo da energia, e há o temor de que outras indústrias terão o mesmo destino. A U.S. Energy Information Administration (agência de informações do mercado de energia dos EUA) emitiu um alerta aos americanos para a probabilidade de pagarem substancialmente mais para se manter aquecidos no próximo inverno, especialmente no caso de uma queda acentuada nas temperaturas.

Por que isso está ocorrendo? A explicação simples é que a demanda por energia está no momento excedendo a oferta, o que faz com que os preços subam. As razões para tal descompasso são muitas, incluindo o clima extremo e imprevisível, bem como decisões equivocadas do governo a respeito do armazenamento, das reservas e linhas de transmissão. Mas há uma causa em comum. Boa parte do mundo deixou de investir em combustíveis fósseis (por bons motivos), o que reduziu a oferta destes. Mas não temos energia sustentável em quantidade suficiente para substituir os combustíveis fósseis. Um dia teremos, mas ainda não temos.

Os números deixam isso claro. Em 2019, mais de 80% do consumo global de energia foi proporcionado pelos principais combustíveis fósseis: petróleo, carvão e gás natural. A energia eólica atendeu a apenas 2% do consumo, e a solar, pouco mais de 1%. Seria necessário um aumento de 2.500% na produção e implementação para que as energias eólica e solar substituam plenamente os combustíveis fósseis, coisa que não vai acontecer imediatamente nos próximos anos. O que precisamos é de uma estratégia de transição. Sem ela, toda vez que houver um choque no sistema (tempo ruim, armazenamento precário), teremos uma crise de energia.

As sociedades modernas não podem funcionar sem o acesso ao fornecimento constante de energia e, por isso, quando tais choques são sentidos, os governos fazem o que for necessário para manter a eletricidade disponível. Vejamos o caso da Alemanha, que durante décadas muniu-se de um extraordinário parque energético de renováveis, mas, na primeira metade de 2021, teve 56% de sua demanda suprida pelos próprios combustíveis que o país busca eliminar (carvão, gás e energia nuclear, por exemplo). A fatia do carvão por si só saltou de 21% para 27% da produção energética alemã.

As contradições da estratégia ocidental para a energia estão se tornando quase absurdas. Confrontado com o alto preço da gasolina, o governo Biden está pedindo à Opep que aumente a produção. Em outras palavras, os EUA estão dissuadindo seus próprios produtores de petróleo e gás de aumentarem a produção ao mesmo tempo em que insiste para que os países árabes que "perfurem sem dó". Os europeus esperam que o presidente russo, Vladimir Putin, bombeie mais gás para seus países enquanto dissuadem os produtores domésticos.

Uma estratégia energética séria reconheceria que a tarefa mais importante é reduzir rapidamente as emissões de carbono. No curto prazo, a maneira mais simples de fazer isso é substituir o carvão pelo gás natural, reduzindo as emissões quase pela metade. Na verdade, a maior parte da redução nas emissões de dióxido de carbono dos EUA, entre 2005 e 2019, decorreu da substituição do carvão pelo gás, sendo o carvão o maior produtor de emissões de dióxido de carbono entre os principais combustíveis fósseis.

Mas há uma medida ainda mais simples e eficaz. A revista Environmental Research Letters realizou um estudo de mais de 29 mil usinas de energia movidas a combustíveis fósseis e identificou que 5% delas respondiam sozinhas por 73% das emissões globais decorrentes da geração de energia.

Poderíamos facilmente pagar para converter essas cerca de 1.400 usinas e obter com isso um benefício imenso na redução das emissões de carbono. E a Agência Internacional de Energia estima que mais de 70% dos vazamentos de metano decorrentes da produção de petróleo e gás podem ser detidos com as tecnologias existentes.

O objetivo deve ser alimentar as tomadas do mundo com energia renovável, não somente no longo prazo, mas no médio prazo. Há muitas boas notícias nesse sentido. O custo da energia solar e eólica caiu dramaticamente, a ponto de essas fontes concorrerem com os combustíveis fósseis. Sua implantação é mais fácil do que nunca.

O armazenamento, que já foi um grande problema no caso dessas fontes intermitentes, é solucionado gradualmente com baterias cada vez mais poderosas e outras soluções de armazenamento que ganham espaço. Ainda precisamos de investimentos muito maiores em pesquisa e desenvolvimento nessa área, mas estamos avançando concretamente.

Enquanto isso, ainda precisamos reduzir as emissões hoje e manter a energia disponível. Caso contrário, teremos mais choques de energia, que podem facilmente se voltar contra as políticas de sustentabilidade. E então o democrata na Casa Branca, Joe Biden, vai começar a se parecer muito com o antecessor dos anos 70, Jimmy Carter./ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL