O Globo, n. 32742, 30/03/2023. Brasil, p. 9

Excluídos da escola

Bianca Gomes


A dona de casa Ana Maria dos Santos Firmino, de 40 anos, percorreu oito escolas públicas de São Paulo até conseguir matricular o filho Miguel Firmino Bernardo, de 6 anos, no 1º ano do ensino fundamental.

O motivo de tantas recusas não foi a falta de vaga, mas o fato de Miguel ser uma criança com deficiência. As escolas alegam que, com o aumento da demanda, não há estrutura e profissionais para auxiliar esses estudantes. Na rede municipal de São Paulo, o número de alunos com deficiência aumentou 45% desde 2013, passando de 16,7 mil em dezembro a 24,3 mil este ano. No estado, o público atingiu patamar recorde em 2023, com 70,8 mil alunos.

As redes municipal e estadual do Rio têm cenários semelhantes. No ano passado, tiveram o maior número de alunos com deficiência em quase dez anos: 20,4 mil e 13,7 mil, respectivamente. Negar matrícula a esses estudantes é crime, tanto na escola pública quanto na privada.

Quando finalmente encontrou uma escola estadual para Miguel, um novo problema: Ana ainda ouviu da professora, no primeiro dia, que o filho não teria condições de ficar com os outros alunos. Com a diretora da escola, comunicou o fato ao estado, que não respondeu à família.

Miguel tem epilepsia, atraso cognitivo e motor. Por conta das crises convulsivas, nunca havia frequentado uma escola. A mãe resolveu matriculá-lo este ano por conta da melhora de sua saúde. Mas o menino só tem ido às aulas duas vezes por semana, em razão da falta de apoio do governo do estado.

Sala separada

— Ele vai duas vezes por semana e fica apenas uma hora e meia. Isso porque uma outra professora está ficando com ele. Em um dos dias, ela até o acompanha na sala de aula. No outro, os dois ficam na sala de recursos, separada dos outros estudantes —diz.

Rodrigo Hübner Mendes, fundador e superintendente do Instituto Rodrigo Mendes, explica que as salas de recurso multifuncionais são equipamentos que devem ser explorados para a realização de atividades extras, o chamado Atendimento Educacional Especializado (AEE).

— Esse serviço foi concebido para atuar como complemento às ações pedagógicas desenvolvidas nas salas de aula comuns. E não como uma substituição. Isso seria um grave equívoco. É importante lembrar que a negativa de matrícula em virtude de um diagnóstico de deficiência é crime no Brasil —avisa.

Procurada, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo alegou que o aluno frequenta a sala de recursos de manhã e as aulas regulares de tarde. A secretaria informou ainda que está contratando um cuidador para ajudá-lo com alimentação, locomoção e higiene, e não trabalha com professor auxiliar em sala de aula por entender que “a presença de outro professor compromete as possibilidades de desenvolvimento e autonomia do estudante”.

A história de Miguel está longe de ser exceção. Ela é um retrato de como as escolas públicas ainda carecem de uma estrutura adequada para promover a real inclusão de crianças com deficiência. As queixas sobre falta de profissionais têm se tornado frequentes com o aumento, ano a ano, do número de alunos com deficiência nas redes municipais e estaduais.

— Estou tendo que ir à Justiça para provar que meu filho tem o direito de estudar. Não existe inclusão na escola, é mentira — reclama Ana Maria.

As quatro redes de ensino citadas na reportagem afirmam ter profissionais contratados para acompanhar as crianças. Na capital paulista, por exemplo, a prefeitura garante ter “cerca de quatro mil pessoas atuando em educação especial”. Mas, como a demanda é grande, há escolas que possuem só uma profissional para atender dezenas de alunos de distintas complexidades.

É o caso da Escola Municipal de Educação Infantil Estrada Turística do Jaraguá, em São Paulo, onde Anthony Taylor Gonçalves Morais, de 4 anos, estuda. A mãe dele, a auxiliar administrativa Silvia Gonçalves, de 42 anos, conta que, só na sala do filho, há outras três crianças com autismo. No período da manhã, há uma única auxiliar de vida escolar (AVE) para prestar apoio a todos os alunos com deficiência da escola.

Silvia também recorreu à Justiça para que o filho pudesse ter um acompanhante especializado, que trabalhasse com Anthony nas atividades pedagógicas e o ajudasse a melhorar a comunicação e socialização. Mas o Centro de Formação e Acompanhamento à Inclusão informou que só as escolas de ensino fundamental tinham esse profissional.

— Essa faixa etária é muito importante e eu percebo que a ausência desse profissional dificulta muito que meu filho se enturme — conta a auxiliar administrativa. — É um sentimento de abandono. Existem leis, regras, mas a prefeitura não tem políticas públicas nem programas para colocá-las em prática.

A prefeitura de São Paulo informou que acompanha o caso e aumentou em 50% o número de AVEs nos últimos anos, passando de 1,2 mil para 1,8 mil atualmente.

Revezamento

O vereador paulistano Celso Giannazi, do PSOL, acionou o Ministério Público e o Tribunal de Contas do Município para relatar a situação. Nesta semana, ele foi procurado por pais de alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Dom Pedro I, onde as crianças com deficiência estão fazendo rodízio para ir à escola. A prefeitura nega a situação e diz que mais profissionais serão encaminhados para reforço.

— A escola só tem uma auxiliar de vida escolar para dar suporte a 35 crianças com deficiência. Por isso, os pais decidiram revezar a ida dos filhos. Além disso, a escola não tem rampa nem elevador. As crianças com dificuldade de locomoção não podem acessar a biblioteca no primeiro andar — denuncia.