O Estado de S. Paulo, n. 46726, 22/09/2021. Política, p. A4
Na ONU, Bolsonaro faz aceno à sua base radical
Beatriz Bulla
O presidente Jair Bolsonaro chocou diplomatas brasileiros e estrangeiros ao defender o “tratamento precoce” para a covid-19, ontem, na abertura da Assembleia-geral da ONU. Primeiro a discursar no evento, Bolsonaro elencou uma série de mentiras e utilizou o púlpito das Nações Unidas para falar com sua base ideológica. O presidente disse que apresentaria “um Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões”, mas terminou o dia retratado pela mídia internacional como negacionista da vacina.
Bolsonaro jogou por água abaixo a tese de diplomatas de que faria um discurso mais sóbrio do que os anteriores sem, desta vez, apelar para sua base ideológica. Logo ao iniciar sua fala, no fim da manhã de ontem, afirmou que o Brasil esteve “à beira do socialismo” antes de ele assumir. Nos 12 minutos e 10 segundos de pronunciamento, ainda atacou governadores e prefeitos por políticas de isolamento social na pandemia, e se colocou contrário a “passaportes de vacinação”, além de mentir e distorcer informações.
“O Brasil mudou e muito depois que assumimos o governo”, disse Bolsonaro. “O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição, valoriza a família e deve lealdade a seu povo. Isso é muito, se levarmos em conta que estávamos à beira do socialismo.”
A narrativa antissocialista e a defesa de medicamentos sem eficácia contra covid têm apelo na base eleitoral de Bolsonaro, a quem ele buscou agradar no palco internacional, como fez sobretudo em sua primeira participação na ONU, em 2019. O presidente ainda citou os atos antidemocráticos de 7 de Setembro, quando apoiadores do seu governo foram às ruas defender o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e a destituição de ministros. Segundo o presidente, as manifestações foram “as maiores da história do País”, o que não é verdade. Protestos contra o governo Dilma Rousseff, em 2016, por exemplo, reuniram mais pessoas.
O roteiro inicial do pronunciamento havia sido elaborado pelo chanceler Carlos França e pelo almirante Flávio Rocha, da Secretaria de Assuntos Estratégicos, numa versão mais moderada. Foi o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), no entanto, quem ajudou o pai a dar a redação final do discurso voltado aos apoiadores mais radicais do bolsonarismo.
Como mostrou o Estadão, diplomatas brasileiros tinham a expectativa de que Bolsonaro anunciasse a doação de doses de imunizantes para países da América Latina, como uma agenda positiva, mas o presidente ignorou a sugestão. Para um integrante da ala ideológica do governo que integrou a comitiva presidencial, “as pessoas que achavam que iriam mudar o presidente estão erradas”.
A fala de Bolsonaro sobre a pandemia destoou do tom adotado por outros líderes globais que, no plenário da ONU, defenderam com ênfase a vacinação como saída para debelar a covid-19. O presidente ainda atribuiu à política de isolamento social a inflação em alta no País, uma das principais ameaças a sua campanha à reeleição. Na contramão do brasileiro, o “lockdown” foi defendido por líderes do mundo, como o americano Joe Biden e o britânico Boris Johnson. “Apoiamos a vacinação, contudo, o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina”, disse o brasileiro.
Ambiente. Ao falar sobre a questão ambiental, Bolsonaro disse que o Brasil tem “grandes desafios” em razão da “dimensão continental” do País e voltou a distorcer números de desmatamentos, como já havia feito no discurso do ano passado. Desde sua eleição, o brasileiro é visto pela comunidade internacional como um líder que coloca em risco a Floresta Amazônica, os direitos de minorias, as instituições democráticas e, desde o início da pandemia, a vida dos brasileiros.
Sem compromisso. Após o discurso, Bolsonaro passou quase dez horas nos EUA sem compromisso oficial. Saiu acompanhado pelo filho Eduardo e pelo ministro Gilson Machado (Turismo) para um almoço privado em um outlet em Nova Jersey. Eles não publicaram fotos deste almoço nas redes sociais, diferentemente do que fizeram quando comeram pizza na rua.
Após a confirmação de que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, é o segundo integrante da equipe de Bolsonaro a testar positivo para a covid (mais informações na pág. A8), a diplomacia brasileira decidiu suspender a presença de diplomatas nas reuniões previstas para hoje na Assembleia-geral.
Pandemia
“Nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina.”
Jair Bolsonaro
Presidente do Brasil em discurso na Assembleia-Geral da ONU