Título: ... sobre um partido em crise
Autor: Daniel Pereira e Fernando Exman
Fonte: Jornal do Brasil, 18/09/2005, País, p. A4

Fundador do partido, intelectual respeitado, o economista Paul Singer recorda os tempos em que o PT fervilhava de idéias e os quadros ainda eram ¿amadores¿, no bom sentido, mais próximos das bases. A profissionalização dos últimos anos, paralela à chegada da legenda ao poder, em vários níveis, é analisada como uma das origens da atual crise. O fenômeno ¿ alerta ¿ é preocupante e afeta a democracia interna porque o PT deixa de ser representativo do conjunto de seus militantes. ¿ Para o ¿profissional¿, ganhar uma eleição passa a ser uma questão de vida ou morte.

Historicamente, o que significam as eleições de hoje no PT? - O PT está passando por sua pior crise em 25 anos. É uma crise existencial. O partido precisa redescobrir sua identidade. Ocorreram distorções tão profundas que o PT tem de ser ser refundado. Temos que repassar a nossa história com uma visão crítica.

O senhor é um dos fundadores do PT... - O processo de fundação ocorreu depois de intensas discussões entre um grande número de interessados. Queríamos um partido plural, não sectário, na perspectiva do socialismo democrático. Lembro-me de uma frase de Mário Pedrosa: devíamos largar as nossas bíblias na porta de entrada. Mesmo assim, houve um certo sectarismo. Durante muito tempo, a esquerda viveu clandestina, na ilegalidade. A tendência, na época, era se dividir em grupos fechados. Depois houve um processo de abertura desses grupos. , Alguns deles se fundiram. Algumas tendências de hoje têm origem naqueles grupos.

A Articulação era o seu grupo... - A Articulação foi formada por muitos petistas que não pertenciam a nenhuma tendência. Não teríamos espaço se entrássemos organizados como uma corrente, em oposição a outras. Hoje a Articulação é a base do Campo Majoritário.

Como o senhor se situa hoje no partido? - Não pertenço mais ao Campo Majoritário. Deixei de ser chamado para as reuniões. Considero que o Campo virou a tendência dos profissionais do partido. São pessoas que se profissionalizaram fazendo política no PT. Parlamentares, executivos em funções governamentais, assessores. Essas pessoas abandonaram suas atividades originais para se dedicar integralmente à política. Depois de alguns anos não têm mais condições de voltar à antiga profissão. A política passa a ser a verdadeira carreira. É um fenômeno que ocorre em outros partidos.

E quais são as conseqüências desse processo num partido como o PT? - A democracia interna sofre com isso, porque o partido deve ser representativo do conjunto dos militantes. Quando há uma predominância dos profissionalizados, essa representatividade deixa de existir. Para o profissional, por exemplo, ganhar uma eleição é questão de vida ou morte. Para os demais militantes, vencer uma disputa é um meio e não um fim. Quero deixar bem claro que não estou fazendo um juízo de valor sobre as pessoas. Eu, por exemplo, sou um ''profissional'', tenho cargo no governo. Mas também sou professor aposentado da USP. Não dependo disso para sobreviver.

Para ganhar a eleição presidencial, o PT fez alianças polêmicas... - Em 2002, reunimos um grande número de intelectuais, uma espécie de consciência crítica do PT e deixamos claro que a aliança com o PL contradizia normas e resoluções do partido. Não considerávamos adequada uma mudança tão radical de rumos. Uma aliança deve ter princípios. Fazer acordo com o PP, um herdeiro do regime militar, também é problemático.

No Rio, desde os primeiros minutos do governo, parlamentares do PT alertaram o Palácio do Planalto sobre o perigo de certas composições... - Não soube desses episódios. Minha preocupação prioritária na época era o próprio governo. Tínhamos todo o interesse em que a administração desse certo. Estava muito preocupado por exemplo, com a Secretaria de Economia Solidária, cargo que assumi.

Assegurar a governabilidade era o argumento chave para explicar a política de alianças. - As alianças são necessárias. É indispensável fazer acordos, negociar. Não podemos atropelar o Legislativo. Quando fui secretário de Planejamento da prefeita Luiza Erundina, em São Paulo, negociava todo ano o Orçamento. O que ocorreu agora foram desvios de caráter financeiro e ético.

O que precisa mudar no PT? - O partido não pode ficar igual aos outros, influenciado pelos profissionais, sem espaço para os movimentos sociais. Os ''amadores'' do PT precisam ganhar mais importância. De alguma forma, o partido precisa se desprofissionalizar. Sou favorável a que pelo menos a metade das instâncias diretivas seja composta por pessoas que não vivem da política, como as lideranças comunitárias.

Quem o senhor apóia na eleição? - Não integro nenhuma tendência. A Democracia Socialista, do Raul Pont, me convidou para integrar a chapa. Aceitei porque concordo com os pontos capitais do documento que me foi enviado, que privilegiam a necessidade de refundar o PT, com a volta aos princípios originais.

Como o senhor encara a perspectiva do partido para os próximos anos? - Não podemos perder de vista o valor do socialismo, quando vem da sociedade e não se apresenta como uma imposição do governo, fruto da tomada do poder. Já temos bons exemplos aqui, como as iniciativas que funcionam no âmbito da economia solidária. São empreendimentos coletivos, propriedade de todos os trabalhadores, em regime de autogestão. Já temos dois milhões de trabalhadores nessas condições?

O senhor poderia dar exemplos? - Veja o caso da Usina Catende, em Pernambuco, que cobre cinco municípios. A antiga usina de cana faliu e é administrada há 10 anos pelos seus trabalhadores. Há 17 mil pessoas morando na área. Em regime de cooperativa, além do cultivo de cana, produzem outros alimentos e criam peixes. As sobras de dinheiro são geralmente investidas em melhorias que interessam a todos. Já temos cerca de 20 mil empreendimentos funcionando com esses princípios.

De acordo com essa visão, há espaço para empreendimentos capitalistas? - Esta é uma questão importante. Ninguém tem o direito de impor o socialismo de cima para baixo. Enquanto existirem pessoas que quiserem receber salários pagos por outras haverá empreendimentos capitalistas. O contrário seria a violação aos direitos humanos, o direito ao contrato livre. Alguns regimes comunistas quiseram fazer essa imposição de cima para baixo. Na realidade, eram ditaduras, sem pluralidade de partidos e sem o respeito aos direitos individuais. O verdadeiro socialismo representa uma continuação lógica das grandes conquistas universais. O sufrágio universal, por exemplo, foi uma vitória socialista.

O senhor está satisfeito com a política econômica? - Seria melhor se fosse diferente, apostando mais no crescimento, como o Kirchner fez na Argentina, que está se desenvolvendo a altas taxas anuais. A ameaça da volta da inflação seria pouco provável. Pressões inflacionárias acontecem quando o crescimento esbarra em limites, como os cambias e de infraestrutura. Creio que não existem, no momento, condições objetivas para a volta do trauma inflacionário.

As políticas sociais do governo têm sido muito criticadas. - São críticas sem base factual. As políticas não são assistenciais nem compensatórias. O principal programa, o Bolsa-Família, está efetivamente eliminando a fome no Brasil e levando o desenvolvimento às áreas mais pobres. É uma injeção de dinheiro maior do que a do Fundo de Participação dos Municípios. As políticas de crédito, como a do microcrédito produtivo e a do crédito consignado, também estão dando certo, possibilitando às pessoas sair do desemprego e da exclusão social. É claro que seria melhor se sobrasse mais dinheiro para essas políticas. Mesmo assim, devem render dividendos eleitorais. É um erro, assim, achar que o presidente Lula é carta fora do baralho para as próximas eleições.