O Estado de S. Paulo, n. 46726, 22/09/2021. Internacional, p. A12

Em estreia na ONU, Biden rejeita nova 'Guerra Fria', mas envia recados à China



O presidente dos EUA, Joe Biden, subiu ontem ao palco da Assembleia-geral das Nações Unidas com a tarefa de manter de pé a narrativa cambaleante de que seu governo é capaz de restaurar o papel do país como líder global. Alvo de críticas e desconfianças de aliados por recentes decisões de política externa, Biden disse em sua estreia na ONU não estar disposto a travar uma nova era de Guerra Fria, mas enviou vários recados à China, maior rival dos americanos.

“Nós não estamos buscando – e eu repito, nós não estamos buscando – uma nova Guerra Fria, ou um mundo dividido em blocos rígidos”, disse o presidente americano. Antes dele, o secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou os líderes mundiais sobre o que vê como uma “receita para problemas”: a distância cada vez maior entre as duas potências.

“Temo que nosso mundo esteja se arrastando para dois conjuntos diferentes de regras econômicas, comerciais, financeiras e tecnológicas, duas abordagens divergentes no desenvolvimento da inteligência artificial – e, em última análise, duas estratégias militares e geopolíticas diferentes”, afirmou Guterres.

Ontem, Biden renovou promessas feitas desde que se apresentou como candidato à presidência dos EUA, com um discurso em defesa do multilateralismo, alinhado portanto com a própria ONU e completamente distinto de seu antecessor, Donald Trump.

No entanto, segundo analistas e diplomatas de nações aliadas, só isso não é suficiente para garantir as credenciais de Biden como novo líder global. Tropeços na estratégia de retirada dos militares americanos no Afeganistão e o recente imbróglio diplomático com a França estão entre os fatores que despertam a desconfiança de aliados com o presidente americano.

O presidente francês, Emmanuel Macron, nem sequer foi a Nova York e enviou seu chanceler, Jean-yves Le Drian. Paris se irritou em razão de a Austrália ter cancelado um contrato de compra de submarinos convencionais franceses – e ter decidido comprar submarinos nucleares dos EUA. A União Europeia ficou do lado da França. “O acordo contraria o apelo (de Biden) por maior cooperação”, disse ontem Josep Borrell, alto representante da UE para a política externa.

Aliança. Após discursar na ONU, Biden recebeu o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, na Casa Branca. O americano tem buscado restaurar alianças clássicas dos EUA e, com novas configurações estratégicas globais, fazer frente aos chineses. Na ONU, ele afirmou que os EUA “estão dispostos a trabalhar com qualquer nação que se comprometa e busque uma solução pacífica para compartilhar os desafios, embora tenhamos intensas divergências em outras áreas”.

Em nenhum momento, o presidente americano falou as palavras “China” ou “Pequim”, mas seu discurso esteve recheado de referências ao rival geopolítico. Em mais uma defesa dos Estados democráticos sobre os autoritários – e uma alfinetada nos chineses –, ele afirmou que “o futuro pertence àqueles que dão a seu povo a capacidade de respirar livremente, não àqueles que buscam sufocar seu povo com um autoritarismo de mão de ferro”. “Os autoritários do mundo procuram proclamar o fim da era da democracia, mas estão errados.”

O líder chinês, Xi Jinping, atacou ontem a ideia americana de que seu governo é autoritário e afirmou que a democracia “não é um direito especial reservado a um país individual”. A declaração estava previamente gravada e foi transmitida em vídeo.

Biden usou seu discurso ainda para defender sua decisão sobre a retirada do Afeganistão e disse que o poder militar “não deve ser usado como resposta para todos os problemas no mundo”. “Acabamos com 20 anos de conflito no Afeganistão e, ao encerrarmos esta era de guerra implacável, estamos abrindo uma nova era de diplomacia implacável”, afirmou.

Novamente, o americano prometeu enfrentar problemas como a pandemia de covid-19 e a crise climática global de maneira coletiva. No palco da ONU, ele garantiu a doação de mais vacinas ao restante do mundo através do Covax, o consórcio global. “Precisamos agir para expandir acesso a vacinas

contra a covid-19”, afirmou o americano. Os EUA, contudo, são criticados por demorarem a iniciar o processo de doação do excedente de vacinas, enquanto países pobres estão muito atrás dos ricos na imunização.

Papel no mundo

"Não estamos procurando uma nova Guerra Fria, ou um mundo dividido em blocos rígidos"

"Os Estados Unidos estão dispostos a trabalhar com qualquer nação que se comprometa e busque uma solução pacífica para compartilhar os desafios, embora tenhamos intensas divergências em outras áreas"

Joe Biden

Presidente dos EUA, em seu discurso na ONU