O Estado de S. Paulo, n. 46729, 25/09/2021. Política, p. A8

MP aponta Carlos como “beneficiário” de rachadinha'

Caio Sartori


O Ministério Público do Rio encontrou indícios de que o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) era o “beneficiário final” de organização criminosa suspeita de desviar salários de assessores em seu gabinete na Câmara Municipal. Na estrutura, Ana Cristina Siqueira Valle, exchefe de gabinete de Carlos e segunda ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro, ocupava, segundo apurações da Promotoria, lugar de destaque.

Ana Cristina tinha sete parentes em cargos de confiança e acumulou patrimônio relevante. Parte dele foi adquirido enquanto ela vivia com Bolsonaro, que foi seu parceiro em transações com imóveis, segundo levantamentos feitos em cartórios. O presidente, porém, não é alvo da apuração.

“Pelos elementos de provas colhidos já é possível vislumbrar indícios da existência de uma organização criminosa caracterizada pela permanência e estabilidade, formada desde o ano de 2001 por diversos assessores nomeados pelo Parlamentar (...)”, escrevem os promotores. O ano citado por eles é o primeiro de Carlos na Câmara. Ele foi eleito pela primeira vez em 2000 e assumiu em 2001, aos 18 anos.

Como o Estadão mostrou no ano passado, Carlos adquiriu um imóvel em dinheiro por R$ 150 mil em 2003, cerca de dois anos e meio depois de entrar no Legislativo. Durante os dois primeiros mandatos de Carlos, Ana Cristina estava em união estável com Bolsonaro. Separaram-se em 2008.

Segundo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) assinalou em relatório citado pelo MP no pedido de quebra de sigilo acolhido pela Justiça em maio, Ana Cristina depositou em sua própria conta R$ 191,1 mil em março de 2011. Quatro meses depois, foram mais R$ 341,1 mil. Houve ainda saques que somaram R$ 1,1 milhão por meio de uma empresa. Em alguns negócios houve uso de dinheiro em espécie e valores supostamente subfaturados.

“Tanto a aquisição de imóveis por pagamento ‘em moeda corrente’ quanto a aquisição de bens por preços subestimados sugerem que Ana Cristina Siqueira Valle se utilizasse de dinheiro em espécie em suas operações imobiliárias, de modo que haverá de se aferir a possibilidade de que a remuneração da Câmara Municipal destinada a seus parentes tenha sido clandestinamente repassada em seu favor”, apontam os promotores.

Outra informação do Coaf destaca e “saldo total de ativos custodiados” no valor de R$ 602,5 mil, em nome de Ana Cristina. Esse patrimônio seria incompatível com o “indicador de renda” dela. A Promotoria também checa quatro empresas, “a reforçar a hipótese de que possam ter sido utilizadas para ocultação do desvio de recursos públicos oriundos do esquema de ‘rachadinha’ na Câmara de Vereadores.”

Foi na Valle Ana Consultoria e Serviços de Seguros que o MP constatou os saques que ultrapassaram R$ 1 milhão, feitos de modo fragmentado. A informação foi revelada ontem pelo jornal O Globo e confirmada pelo Estadão. Foram 1.185 saques entre 2008, ano em que ela saiu do gabinete e se separou de Bolsonaro, e 2014. O valor médio por saque foi R$ 1 mil. O Coaf alertou que a empresa tem saques em espécie como principal forma de saída de recursos, o que dificulta “a identificação da real utilização dos valores”.

Estrutura. O MP considera que a suposta organização criminosa dedicada à “rachadinha” era integrada por seis “núcleos” – na verdade, famílias. Além de Carlos, outras 26 pessoas tiveram os sigilos bancário e fiscal quebrados por ordem da Justiça, em maio. Segundo os promotores, o filho do presidente teria usado o esquema para cometer o crime de peculato (desvio de dinheiro público por servidor), “cuja pena máxima supera quatro anos”.

O primeiro e mais detalhado núcleo envolve Ana Cristina e sete parentes que passaram pelo gabinete de Carlos. As demais famílias têm os sobrenomes Góes, Martins, Gerbatim, Fernandes e Duarte.

O caso dos Gerbatim, por exemplo, é embasado por uma reportagem do Estadão, que mostrou que eles nunca haviam emitido crachá funcional na Câmara. Márcio e Claudionor Gerbatim são parentes de Fabrício Queiroz, denunciado como operador das “rachadinhas” no gabinete do hoje senador Flávio Bolsonaro (Patriota-rj), quando ele era deputado estadual.

Há situações curiosas, como a da ex-assessora, Nadir Barbosa Góes, que recebeu parcelas de R$ 187,8 do Bolsa Família por dois meses, apesar de ter salário de R$ 10,1 mil no mesmo período, entre outubro e dezembro de 2018.

Outros exemplos expõem a discrepância entre os salários oficiais de assessores e suas reais condições de vida. Juciara da Conceição Raimundo, por exemplo, do núcleo da família Fernandes teve remuneração média de R$ 8 mil por mais de 11 anos. Enquanto isso, mantinha como endereço uma casa numa favela de Cordovil, zona norte do Rio, que dividia espaço com uma oficina mecânica.

Procuradas, as defesas de Ana Cristina Valle e do vereador Carlos Bolsonaro não se posicionaram até a conclusão desta edição. Em outras ocasiões, o filho do presidente negou as acusações iniciais feitas pelo Ministério Público.

Sob Suspeita

• 'Família'

Com sete parentes nomeados no gabinete de Carlos Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle, então madrasta do vereador, teria empregado "fantasmas" para ficar com os salários. A maioria desses "funcionários", segundo investigações, morava em Resende, no sul fluminense; um deles vivia em Minas Gerais.

• Investigação

Segundo o Ministério Público do Rio, Ana Cristina seria a beneficiária dos desvios dos salários dos parentes nomeados no gabinete de Carlos. A tese é reforçada por movimentações financeiras da ex-mulher de Jair Bolsonaro.

• Imóveis

Durante a união com Bolsonaro, Ana Cristina foi ativa no mercado imobiliário e fazia transações em dinheiro vivo, o que chamou a atenção de investigadores.

• 'Organização criminosa'

Assim como outros investigados, Ana Cristina é suspeita de integrar uma organização criminosa montada para desviar recursos da Câmara Municipal do Rio.