O Estado de São Paulo, n. 46763, 29/10/2021. Economia p.B2

 

Com tolerância do governo, hidrelétricas desrespeitam lei ao não revisar capacidade

 

André Borges

 

Com tolerância do governo federal e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), hidrelétricas de todo o País descumprem a lei e deixam de revisar a capacidade de geração de suas estruturas, o que tem resultado em frustração de produção e, assim, gerado custos bilionários ao consumidor de energia.

A regra é conhecida. Desde 1998, um decreto (2.655) prevê que, a cada cinco anos, toda usina hidrelétrica deve revisar a sua "energia assegurada". Esse cálculo, de competência da EPE e vital para o setor elétrico, permite a realização de simulações que apontam a contribuição de cada gerador e a máxima quantidade de energia possível de oferecer.

Ano após ano, as usinas têm perdido capacidade de geração devido a fatores como redução do volume de água, além de equipamentos, que podem ficar defasados. Na prática, as usinas não fazem essa revisão, porque sabem que qualquer redução na garantia física das usinas vai significar perdas financeiras, porque diminui o montante de energia que podem vender, independentemente de quem vá pagar por isso. Não por acaso, as hidrelétricas sempre dificultaram esse pente-fino, tanto que a primeira revisão só ocorreu em 2017, 20 anos após a exigência legal.

Essa falha de empresas e do poder público tem sido acompanhada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), para dar fim ao "descompasso entre a garantia nominal e a real que gera custos vultosos aos consumidores".

Na auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU), os técnicos dizem que há expectativa de que o Ministério de Minas e Energia (MME) revise as garantias físicas das usinas até 2024, com efeitos em 2025, em acordo com o TCU. Isso permitirá uma visão mais clara do que pode ser produzido pelas hidrelétricas, evitando a necessidade de recorrer ao "mercado livre" de compra de energia, mais oneroso.

 

'SEM TRANSPARÊNCIA'. "Desses fatos, espera-se que não volte a ser adotada política pública baseada em bom desempenho hidrológico pregresso, de forma a evitar custos inicialmente não previstos que porventura recaiam sobre o consumidor cativo e ainda podem gerar impacto fiscal", afirma a CGU, acrescentando que "grande parte desses custos está sendo transferida para o mercado cativo (consumidor de energia vendida pelas distribuidoras), que estão suportando, sem a devida transparência, custos que deveriam ser compartilhados com todos os atores do setor elétrico".

A reportagem questionou o governo e o setor. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) declarou ter "certeza de que realiza seu trabalho de forma transparente e responsável" e que coordena o "despacho centralizado das usinas conforme atribuição a ele concedida". O ONS disse que a geração e temas afins "são mecanismos calculados por outras instituições" e estão "fora das atribuições do operador".

A EPE e o ministério não se pronunciaram. A Norte Energia, empresa privada dona de Belo Monte, declarou que "não tem ainda conhecimento do escopo e do relatório conclusivo da referida auditoria".

A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, agente financeiro do setor, declarou que tem auxiliado a CGU, prestando informações e esclarecimentos, e "reforça que cumpre, nas suas operações, todas as diretrizes estabelecidas na legislação brasileira e nas regulações aplicáveis ao setor".

 

Receita menor

Ao reconhecer redução do volume de geração de energia, usinas teriam perdas financeiras

 

Prejuízo bilionário

R$ 2,22 bi

foi o que os consumidores de energia tiveram de pagar, entre 2017 e 2019, para cobrir erros de cálculo de produção de energia e compensações por frustração de geração hidrelétrica

 

R$ 693 mi

foi o valor bancado pelos consumidores em decorrência do atraso de linhas de transmissão de energia que não entraram em operação na data planejada, fazendo com que usinas liberassem água sem produzir energia