O Globo, n. 32693, 09/02/2023. Mundo, p. 18

Assédio à democracia na pauta de Lula com Biden

Janaína Figueiredo


Para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o encontro com Joe Biden na Casa Branca, amanhã, tem enorme importância em vários sentidos. Um deles, confirmou ao GLOBO uma fonte que integrará a delegação a Washington, será, por parte do Brasil, a oportunidade de que os dois chefes de Estado defendam juntos a democracia e a necessidade de combater extremismos políticos violentos e flagelos dos novos tempos, com destaque para a disseminação de desinformação.

Depois do 8 de janeiro, em Brasília, o governo Lula pretende levar a Washington sua preocupação pelo assédio à democracia brasileira e compartilhar com o governo Biden o temor pelo crescimento e fortalecimento da extrema direita no país, assim como a dificuldade de combater a desinformação. Esta última questão, acrescentou a fonte, “é um enorme desafio para as duas maiores democracias da região. Os dois governos precisam se articular e trabalhar juntos”.

Como? Essa é uma pergunta para qual o governo brasileiro ainda não tem uma reposta clara, mas está, internamente, analisando caminhos a seguir para enfrentar o que Federico Finchelstein, professor de História da Universidade The

New School, em Nova York, considera uma das maiores ameaças aos regimes democráticos da região e do mundo.

— Lula e Biden são aliados naturais porque ambos devem lidar com populistas que se aproximam do fascismo, ignoram as Constituições dos seus países e questionam resultados de eleições —explicou o professor argentino, que vive há 20 anos nos EUA.

Para ele, “é muito difícil entender o que aconteceu no Brasil em 8 de janeiro sem entender o que aconteceu nos EUA dois anos antes”.

— Biden e Lula lideram coalizões que tiveram como principal bandeira a defesa da democracia —diz Finchelstein, que escreveu vários livros sobre fascismo e populismo. — Nunca antes os momentos políticos de Brasil e EUA se pareceram tanto. Os dois presidentes estão permanentemente defendendo as instituições de seus países diante da ameaça da extrema direita.

Troca de experiências

Tanto no Brasil quanto nos EUA, movimentos políticos que perdem eleições buscam, através da desinformação, deformar a realidade e, basicamente, negá-la. Especialistas acreditam que a troca de experiências entre Lula e Biden pode ser muito produtiva, embora, frisa o professor da The New School, existam diferenças importantes entre os cenários que vivem atualmente ambos os países. Uma das maiores diferenças é o papel dos militares.

— No Brasil vemos um papel forte, essencial, do Judiciário, coisa que não acontece aqui nos EUA. Por outro lado, no 6 de janeiro americano, os militares estiveram totalmente alheios e acharam tudo aquilo um horror, fizeram paralelismos com Hitler. Já no Brasil, não vemos, de fora, um compromisso tão forte dos militares com a democracia. Acho que esse é um dos perigos do bolsonarismo — explica Finchelstein.

O professor enfatiza que o vínculo sólido entre Judiciário e Executivo no Brasil pode ser um exemplo para os EUA de Biden.

— Cada um pode aprender do outro. Existe um claro interesse da administração Biden de se identificar com propostas de Lula —aponta ele.

O governo Lula chegará a Washington com uma agenda ampla e a decisão de retomar uma relação que se desgastou profundamente durante o governo de Jair Bolsonaro. Acordos de cooperação e contatos foram mantidos, mas o fato de o ex-presidente, que viajou para os EUA pouco antes de deixar o poder, ter demorado meses em reconhecer a legitimidade de Biden causou um dano enorme, que Lula pretende recompor rapidamente.

A agenda bilateral também incluirá temas como o combate às mudanças climáticas, a situação política na Venezuela e guerra na Ucrânia, entre outros, mas espera-se que do encontro saia uma declaração conjunta inédita sobre os riscos que vivem as democracias em todo o mundo.

‘Laboratório de extremismo’

O Brasil, sustenta Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea da Universidade de Juiz de Fora e coordenador do Observatório de Extrema Direita, “é um laboratório de produção de extremismo, e não apenas um importador”. Segundo ele, os EUA conseguem exercer uma liderança nesse aspecto, são uma inspiração para a extrema direita brasileira, mas o Brasil também faz sua parte”.

— Este é um fenômeno global, e uma interface entre Brasil e EUA representará a possibilidade de entender que existe uma rede de desinformação. Existem grupos que se inspiram entre eles e é preciso pensar políticas para contê-los —afirma Caldeira Neto.

É preciso, acrescentou o professor, “discutir sobre as plataformas, as redes sociais, saber se os governos podem construir barreiras para a disseminação do extremismo, mas não apenas como fenômeno político, também social e cultural”.

— As derrotas de Trump e Bolsonaro diminuíram a força política do fenômeno, de certa maneira, mas temos de pensar do ponto de vista social e cultural. Estamos falando de uma geração inteira que se moldou politicamente por meio de canais e processos de desinformação, essa é sua plataforma política — disse Caldeira Neto.

O especialista lembrou, ainda, que a questão da permanência, nos EUA, de Bolsonaro e alguns de seus aliados, como o blogueiro Allan dos Santos, também deveria estar na agenda dos dois presidentes.

— O extremismo político superou as fronteiras europeias, chegou ao nosso continente e precisamos de uma agenda propositiva para enfrentar estas ameaças — concluiu Caldeira Neto.