Título: Pausa na marcha lenta
Autor: Villas-Bôas Corrêa
Fonte: Jornal do Brasil, 05/11/2004, Opiniões, p. A11
Se o governo e o Congresso já se arrastavam com o saltitante passinho de cágados e moluscos e ainda conseguiu reduzir a marcha lenta à paralisação de meses durante a campanha eleitoral, agora dá sinais de vida, com quem acorda de pesadelo e descobre que, antes de qualquer coisa, necessita arrumar a bagunça da casa, com picumã no teto, louça suja largada na pia e da sala à cozinha a desordem de mafuá. O acerto de contas, com a cobrança de traições ou da intromissão oficial além dos limites da compostura na ajuda aos seus candidatos e aliados é a borra que sempre junta no fundo das derrotas. Mas, a dose dos desabafos parece bater recorde por diferença alarmante. De ponta a ponta, não apenas as vozes da oposição, mas os berros dos aliados afinam-se no coro das denúncias e baixam o tom à desafinação das descomposturas.
No Congresso, como de costume, o espetáculo não é aconselhável para menores e pessoas sensíveis. Empacado há mais de quatro meses no atoleiro eleitoral, na reabertura chinfrim o plenário ouviu discursos que anunciam para o presidente Lula a colheita de dificuldades semeadas pelo governo e regadas pelo PT no vale-tudo das alianças que mancham a coerência da legenda e desmentem os compromissos de quatro campanhas.
E, como não poderia faltar, o baixo clero pula à frente do cordão para apresentar a fatura do seu silêncio e dos seus futuros votos, reivindicando, com uníssono apoio da frente única de partidos e seus representantes, o imediato reajuste de 15% dos seus subsídios, que pulariam de R$ 12.720 para R$ 14.628. Claro que é apenas a ponta da meada. É só puxar o fio que a fieira de vantagens, benefícios, mordomias, passagens, verba de gabinete e a mutreta do salário indireto, apelido da verba indenizatória, e os repasses mensais disparam para as alturas dos R$ 100 mil de um dos melhores empregos do mundo.
O reajuste dos 30 mil servidores, ativos e inativos, pleiteado com o argumento inquestionável do aumento do custo de vida, representa um acréscimo na folha anual de pagamento de R$ 3,5 bilhões para R$ 4.025 bilhões.
Com a carona dos parlamentares, chegará à lua. E tudo escorrega na maciota, nos cochichos das mesas diretoras do Senado e da Câmara. O presidente petista da Câmara, deputado João Paulo Cunha, precipitou-se confirmando que o reajuste dos servidores e dos parlamentares abrirá a pauta da reunião da Mesa Diretora na próxima semana.
Infelizmente para o presidente Lula, os reparos nos furos da sua base parlamentar e os rombos nas relações com a oposição são muito mais complicados e desgastantes do que o maxixe dos caraminguás no Legislativo.
O forçado otimismo em falsete da arrancada da máquina para descontar o tempo perdido não se aplicou em conferir prazos e datas no calendário. De logo, o final de ano está irremediavelmente perdido. Não apenas porque em menos de dois meses, os feriadões do Natal e do Ano Novo emendam com a lombeira das férias de verão, as praias e as montanhas, o Carnaval e as penitências da Semana Santa e espicham para março a madraçaria da volta ao batente dos privilegiados. Mas, o presidente deu a sua contribuição ao entorpecimento oficial com o desastrado anúncio, vazado nas clássicas inconfidências palacianas, de mexidas no monstrengo ministerial para abrigar a nova safra de petistas castigados pela ingratidão do voto. Estima-se por alto, no palpite com a escora da verossimilhança, que da invasão do PT a todas as vagas no serviço público, inclusive autarquias, conselhos e adereços, deve sobrar cerca de 10 mil com a troca de legenda nas prefeituras de capitais e municípios dos quais a desbotada estrela vermelha foi despedida.
Não há como acomodar tanta gente aflita em prazo curto. No máximo, nos casos mais urgentes, caiba o recurso do acesso à Bolsa Família.
No Ministério mingua o espaço para improvisar gabinetes com tabiques ou estender a cortina no canto para a criação de mais pastas e secretárias, além das 35 do buquê de raras rosas e muitas flores murchas pela ociosidade de quem nada faz porque não tem nada para fazer.
Com tais encrencas e o pouco apetite presidencial para a rotina administrativa, não se deve esperar grandes novidades da metade restante do mandato de Lula.
A prioridade natural e imperativa é a reeleição em 3 de outubro de 2006. E não se pode fazer tudo ao mesmo tempo, que ninguém é de ferro.