O Globo, n. 32694, 10/02/2023. Brasil, p. 9

Tragédia anunciada

Patrik Camporez


Denúncias enviadas à Funai no último ano de mandato de Jair Bolsonaro revelam que a crise humanitária dos ianomâmis era uma tragédia anunciada. A fundação recebeu 36 alertas sobre as más condições enfrentadas pela etnia entre abril e novembro, equivalente a cinco por mês. Dos próprios indígenas, de organizações internacionais, como a ONU, e de braços do Estado como o Ministério Público Federal.

Os relatos eram de estupros, disseminação de doenças e desnutrição. Procurada para comentar quais providências foram tomadas a respeito dos ofícios, a Funai não se manifestou.

Abril marca o início do agravamento da crise. No dia 25, o Conselho Distrital de Saúde Indígena local divulgou que uma menina de 12 anos havia morrido após ser estuprada por garimpeiros. Entidades nacionais e estrangeiras passaram a denunciar o que se passava na região à Funai. O GLOBO teve acesso ao material por meio da Lei de Acesso à Informação.

Três dias depois, líderes ianomâmis pediram de socorro à Funai, denunciando a ação de garimpeiros ilegais. “Nossas famílias estão adoecendo e morrendo de doenças facilmente tratáveis. Nossos jovens estão morrendo pela violência das armas de fogo trazidas pelos garimpeiros”, dizia o apelo da Hutukara Associação Yanomami.

Outros líderes fizeram denúncias, por meio do Disque 100, canal do governo federal, que eram retransmitidas à Funai. “Crianças da Terra Indígena Yanomami estão morrendo com sintomas de malária e desnutrição, sem receber tratamento médico”, escreveu um indígena em 9 de maio de 2022.

Conforme a situação se agravava, algumas organizações internacionais passaram a enviar representantes à região, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Escalado para a missão, Jan Jarab colheu relatos na reserva de 22 a 26 de maio e enviou um relatório à Defensoria Pública da União, que o remeteu à Funai.

O funcionário da ONU já classificava o caso como uma “grave crise humanitária e de direitos humanos” e contou ter presenciado casos de desnutrição infantil. Ele também citou a introdução de álcool e drogas, além de “abusos sexuais contra mulheres e meninas por garimpeiros".

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos também cobrou do governo medidas para prevenir a exploração e a violência sexual “contra as mulheres e crianças”. O documento foi ainda para a Polícia Federal.

Um dos alertas partiu de quem hoje preside a Funai: em 14 de setembro, a então deputada federal Joenia Wapichana denunciou ao Ministério da Justiça a morte de seis crianças nas regiões de Xitei e Surucucus, na Terra Indígena Yanomami. A parlamentar disse que as mortes envolviam falta de assistência à saúde indígena. Dois dias depois, o caso foi enviado à Funai e à Polícia Federal.

Procurada, a PF disse que todas as informações recebidas são analisadas e, “sendo constatadas a materialidade do fato e a existência de indícios de autoria, devidamente investigadas”. A corporação não respondeu se investigou as denúncias de Joenia.

Operação êxodo

Iniciada no domingo para acompanhar a saída de garimpeiros da terra ianomâmi e reforçar a segurança de cidades que podem ser usadas como rota de fuga dos invasores, a Operação Êxodo, da Polícia Militar de Roraima, abordou 875 pessoas e 139 veículos em dois dias.