Título: As imprudências de JK em discussão
Autor: Pedro Rogério Moreira
Fonte: Jornal do Brasil, 05/11/2004, Brasília, p. D-8

Roteiro de filme que mostra o {/i}donjuanismo{/i} de JK desagrada família do ex-presidente, que pede a retirada de algumas cenas Num discurso sensacional, que entrou para a história parlamentar brasileira como o Elogio da Imprudência, o deputado Paulo Pinheiro Chagas, líder do PSD, provou que Juscelino Kubitschek estava fazendo um governo feliz porque era imprudente. Estávamos em 1959, JK havia rompido com o FMI, enfrentara rebeliões militares para depô-lo e era criticado pela construção de Brasília. O deputado mineiro subiu à tribuna para defender uma tese original: ''Para a fascinante tarefa de construir um outro Brasil, nela há que se pôr um pouco de aventura, qualquer coisa de poesia''. Mais adiante perguntava: ''Será a prudência uma dessas virtudes superiores, que fazem a grandeza dos povos?'' E respondia: ''Não estou muito seguro da excelcitude da prudência. Não raro, ela é o contrário da coragem. Em contrapartida, os imprudentes conquistaram o mundo, lançaram os fundamentos da civilização''. E dava vários exemplos, como Cristo, o apóstolo Pedro, Cristóvão Colombo, Pasteur, Santos Dumont, Churchill etc, e JK.

Se a ousadia, o outro nome da imprudência, foi a responsável pelo enorme progresso material e pela felicidade geral da nação - duas obras-primas do governo de Juscelino -, o nosso mais amado presidente da República, na sua vida amorosa, agia com bastante dissimulação, como é do feitio dos mineiros.

Sendo mineiro, e autor do livro Bela Noite para Voar, sigo à risca o breviário da terra. Invento uma viagem de JK, durante a qual o avião presidencial será objeto de uma conspiração para derrubá-lo e, assim, encerrar a carreira política do Pé de Valsa, apelido dado pela oposição ao presidente que gostava de dançar. A dança era uma das muitas exteriorizações da alegria de viver do mais sorridente estadista brasileiro de todos os tempos. Uma outra exteriorização era aquela que hoje é motivo de censura.

Na pele do narrador do livro, até censuro quem se atreve a desvendar os segredos existentes para além do gabinete de trabalho de JK no Palácio do Catete. Na viagem descrita no livro, o narrador diz que não incluirá como membro da comitiva o escritor Autran Dourado, que era secretário de imprensa de JK. O caso é que JK, na escala em Belo Horizonte, irá a uma serenata, com muita moça bonita. ''Com linguarudos por perto, é um perigo'', avisa o narrador, e inclui entre os linguarudos o grande romancista Autran Dourado, porque ele comete em seu livro de memórias Gaiola Aberta a seguinte indiscrição: o presidente vedava o acesso ao terceiro andar do Catete, por motivos donjuanescos.

''Isso é coisa que se conte, seu Autran?'', passa-lhe um pito o narrador. ''Por isso, vou botá-lo de castigo, você ficará no Rio escrevendo seus belos romances, mas não fará parte da minha viagem'', sentencia o narrador.

Embora dissimulado no livro, o donjuanismo não é crucial na narrativa. Bela Noite conta histórias reais (as rebeliões de Jacareacanga e Aragarças, ocorridas no âmbito da Aeronáutica) e tece ficção: o salvamento do avião presidencial de JK pela aviadora Princesa, ''bela como Ava Gardner, audaz como Clarisse Lispector'', calcada na figura real da aviadora e escritora mineira Maura Lopes Cançado, que talvez nem tenha conhecido Juscelino. Ele não sabe o que perdeu: Maura, nos verdes anos, era um estouro de mulher, e também uma intelectual bastante ousada para a época.

O diretor Zelito Viana preferiu não rezar pelo breviário dissimulado do autor do livro. Quer abrir a alcova. No livro, a Princesa é uma figura de retórica, ela existe nas composições escolares do menino Pedrim. No filme, não há o menino. Zelito vestiu a Princesa na pele da Sra. Maria Lúcia Pedroso, até hoje tão bela quanto nos dias em que Juscelino deitou os olhos nela, há tantos anos... Entrevistou-a por muitas horas para escrever algumas cenas. A neta de JK, Anna Christina, e seu marido, o senador Paulo Octávio, ao lado de amigos fieis de Juscelino, não gostaram desta evidência escancarada. Estão no direito deles, acreditam sinceramente zelar pela memória do estadista.

Assisti à reunião havida no Memorial JK, na semana passada, em que comunicaram à produtora Cláudia Furiati a inconformidade com o roteiro. Alguém na mesa contou que havia lido, naquele dia, uma entrevista em que a ex-atriz do teatro rebolado, Wilza Carla, dizia que havia namorado o presidente. ''Imagina se o Juscelino ia dar bola para ela!'', desdenhou a escritora Vera Brant, por sinal a mais destacada censora do roteiro de Zelito naquela reunião.

Não sei se JK namorou ou não a outrora bela e voluptuosa atriz. Se namorou, fez bem. Sou daqueles que torcem para nossos presidentes operarem em larga escala lá em cima, para não nos fornicarem aqui embaixo. O que sei, de verdade, é que muita gente gostaria de ser incluída oficialmente no rol das mulheres que supostamente tiveram o que consideram um privilégio.

Os interessados no assunto devem ler o verbete ''Vida amorosa'', no capítulo sobre JK, no livro Presidentes do Brasil (De Deodoro a FHC), editado pela Universidade Estácio de Sá e destinado ao leitor em geral, mas ao estudante em particular. No calhamaço escrito com sabor, a juventude brasileira está aprendendo de JK:

- A fama de mulherengo não cessou com o casamento e nem foi interrompida pelo exercício da Presidência - diz o livro.

E vai por aí abaixo, entregando nomes. E termina assim: ''O governo de JK ficará na história pelo desenvolvimento, pela lucidez, pela tolerância e pelo espírito de conciliação. Além das grandes realizações, foi um qüinqüênio de paz política''.

Como se vê, razão tinha Paulo Pinheiro Chagas, o genial tribuno de Elogio da Imprudência: nada como botar um pouco de poesia, qualquer coisa de aventura, na ação de governo. É o que, por caminhos diferentes, o meu livro quis mostrar que JK fez, e o filme de Zelito também pretende.