Título: A vingança dos coelhos
Autor: Gilson Caroni Filho*
Fonte: Jornal do Brasil, 19/09/2005, Outras Opiniões, p. A11

A cada crise política vivida no país, a classe dominante tem mostrado inequívoca capacidade de antecipação. A famosa recomendação de Antônio Carlos de Andrada para que se fizesse a revolução ''antes que o povo a faça'' é atualizada com presteza pelos oportunistas de plantão.

As denúncias de corrupção contra o governo Lula e a administração petista recolocaram na ribalta os mágicos de sempre, com suas cartolas e coelhos envelhecidos. O que propõem como reforma política é rota de fuga para que a esfera pública brasileira não seja repensada a fundo.

Evidente que não estamos nos referindo ao projeto de lei do senador Jorge Borhausen que prevê proibição de boca de urna, showmícios e distribuição de bottons. Isso é gracejo de direitista em estado de encantamento. Alegria de oligarca posando de vestal.

O foco desse artigo é a proposta de reforma eleitoral que, avalizada por inúmeros especialistas, tem um inegável teor regressivo. Suas duas pedras de toque impõem, sob o disfarce da modernização, uma camisa de força que contradiz o decantado ideário republicano: as listas partidárias fechadas e o voto distrital. O voto em lista ,como já destaquei em artigo publicado no sítio Carta Maior, não fortaleceria os partidos, muito menos os defenderia de serem tomados de assalto por oportunistas, corporação e lobistas. Tais grupos poderiam obter maioria nas convenções partidárias ou ''entrar pela janela'' quer pelo poder econômico, quer pelo potencial de puxar votos. Tomar isso como pressuposto do financiamento público de campanha é falso. Nada impede que, no sistema atual, a verba pública seja destinada a despesas de campanha estritamente partidárias. O que pretendem os seus defensores é escamotear as intenções que os movem: permitir que o caciquismo se eternize no legislativo, impedindo o acesso de novas lideranças políticas e forças sociais. Um neocoronelismo disfarçado de democracia moderna A adoção do voto distrital seria mais um passo nesse rumo de oligarquização e conseqüente esvaziamento da política como processo participativo. Longe de se tornar robusto, o sistema partidário se fragmentaria em meras agregações de coronelatos. E o que seria o Orçamento senão mero retalho de emendas individuais para atender demandas do curral de parlamentares? Assim, o que está sendo tramado não diminui a corrupção. Pelo contrário, a estimula e muito.

A verdade é que não precisamos apenas de reformas pontuais. O que urge é repensar a esfera pública tal como está constituída. Patrimonialista até a medula, o ''público'' é peça de retórica. Tão dominada pelo pensamento único do neoliberalismo, que os analistas festejam o que pode ser sua falência. Quem não leu que a crise não contaminou a economia? Nada a comemorar. O que está sinalizado é que o mercado prescinde das incertezas da política. Prefere uma democracia decantada de projetos alternativos e pautada pela mídia. Impossível também pensar em democracia efetiva ignorando o papel de conglomerados informativos como atores políticos. Em um país onde a imprensa sempre endossou retrocessos políticos, o que esperar dela na construção de uma agenda republicana? Seria ela capaz de abrir mão do projeto autoritário de ser a única instância de intermediação entre Estado e sociedade? Aboliria a semântica que define como populista quem não reconhece a agenda liberal como avanço civilizatório? Ora, não sejamos tolos, a mídia, tal como estruturada hoje, é incompatível com uma institucionalidade não moldada a seus interesses político-empresariais. A lógica que maximiza os ganhos é causa do déficit democrático. É tucana e disso não faz segredo. Estaria disposta a aceitar a moldura anunciada por Wanderley Guilherme dos Santos? ''A democracia em países em desenvolvimento só se consolida quando o que a imprensa quiser for irrelevante para a estabilidade do governo''. Estes são os pontos centrais. Os que permitem aos coelhos virar o jogo, tirando mágicos da cartola autoritária.

*Gilson Caroni Filho é professor titular de sociologia da Facha