Título: A cidade, o lixo e seu destino
Autor: Aspásia Camargo
Fonte: Jornal do Brasil, 19/09/2005, Outras Opiniões, p. A12

A sociedade da abundância gera um acúmulo crescente de resíduos cujo destino final é sempre inconveniente e problemático. O Rio de Janeiro recolhe 8 mil toneladas de lixo por dia através de uma frota de caminhões e de um exército de garis que percorrem ruas, praias e favelas e que chegam a limpar a Avenida Rio Branco até 13 vezes por dia. O serviço é reconhecidamente muito eficiente, mas será eficaz? É importante educar a população, reduzir o volume do lixo, como as embalagens, por exemplo, e obrigar as empresas a acompanharem o ciclo de vida do produto ''do berço ao túmulo''. Afinal, o que fazer com as danosas baterias depois de usadas, senão devolvê-las a quem as produziu? O desenvolvimento sustentável de uma cidade exige a indústria da reciclagem e a coleta seletiva que, no Rio, atinge apenas l milhão de pessoas. O gás metano, derivado do lixo e responsável por 40% dos gases de efeito estufa na cidade, pode ser aproveitado como insumo energético para iluminação urbana e ainda receber recursos internacionais previstos no Protocolo de Kyoto. No século 21, a meta desejável é o lixo zero, aplicando o famoso ''reutilizar, reduzir, reciclar'' ( RRR). Esta é a política que os ambientalistas recomendam para o Rio de Janeiro.

No entanto, continuamos patinando no século 19, época em que o lixo era despejado sem pudor nos logradouros públicos. Nossos rios e lagoas são lixeiras ambulantes que incluem geladeiras, sofás e fogões. É o que acontece com o rio Irajá, hoje um pouco mais protegido por uma esperta ''ecobarreira''. O lixo é uma realidade feia e malcheirosa que revela a precariedade da espécie humana, por isso o desejamos sempre o mais longe possível de casa. E aí a briga é feia. É uma guerra. Por decisão federal, nossos restos foram, durante 30 anos, para o lixão de Gramacho, aterro controlado e em fase terminal de uso, que afunda paulatinamente, pairando como grave ameaça à Baía de Guanabara. A ética ambiental impõe a transferência deste depósito para o nosso território, decisão difícil em uma cidade acometida por uma grave crise de governança, pela fragmentação política e a paralisia degenerativa de seus membros. Os problemas aqui nunca se resolvem, nem se negociam. A origem do imbróglio é a competição feroz, e a indefinição de competências entre os três entes que governam a ex-capital federal, em um jogo permanente de soma zero. A responsabilidade se deve à coabitação deste triângulo nada amoroso composto pelo governador, o prefeito e os delegados federais que aqui permanecem e que pode explicar porque problemas municipais como o tratamento do lixo tornam-se batalhas campais que mobilizam esses diferentes interesses políticos.

A limpeza urbana é, nas grandes cidades, um próspero e disputado negócio de contratos milionários. A crise em Brasília nos alerta que estes negócios, muitas vezes, acobertam superfaturamentos e a chamada ''máfia do lixo''. Por esta razão, é necessário que a cidadania tudo acompanhe e esteja alerta. No entanto, a licitação realizada pela Comlurb no Rio de Janeiro para instalar um aterro sanitário, há dois anos, levou a polêmica a limites extremos, desencadeando uma guerra entre as empresas concorrentes, resistências estaduais e federais, conflitos com a prefeitura de Duque de Caxias e os catadores de lixo, além de protestos dos vereadores da Zona Oeste e insatisfações das ONGs ambientalistas. A Comissão de Meio Ambiente da Câmara de Vereadores resolveu convocar as partes envolvidas para avaliar melhor os conflitos explícitos ou submersos que não conseguiram se manifestar nas três audiências públicas interrompidas. No encontro da Câmara, com a presença do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Município, os obstáculos técnicos do licenciamento ambiental do aterro foram considerados superados pela Feema e pela Serla e o governo estadual, segundo parecer da Procuradoria do Estado, transferiu a querela para o plano político, deslocando a decisão final do prefeito para a Câmara de Vereadores, da qual dependem mudanças no zoneamento da área . No plano jurídico formal, o edital e a licitação pública foram aprovados e arquivados pelo Tribunal de Contas do Município, enquanto a batalha da empresa vencedora se prolonga no Judiciário, contra aconcorrente e junto ao Ibama e ao DAC, ambos federais. O ponto mais polêmico tem sido a escolha do bairro de Paciência, na Zona Oeste, para depositar o lixo, provocando o embargo de seus representantes políticos na Câmara, que interpretam a decisão como lesiva à região mais abandonada e mais pobre da cidade. Prevalecem ainda o desconhecimento técnico de como funciona um aterro sanitário moderno e propostas fantasiosas com incineradores especiais ou fracassadas usinas. A indústria da reciclagem é uma solução necessária, prejudicada em função do custo reduzido do nosso lixo. O local escolhido pelas empresas concorrentes foi sempre o mesmo : Paciência, por ter a mais baixa densidade demográfica e terrenos livres e mais baratos. No entanto, persiste a proposta de descentralizar os aterros. A ONG Eco Marapendi sugeriu um aterro também na Barra mas outros argumentam que a dispersão dificultará a exploração energética do empreendimento. O tema social mobilizador foi a dívida social com os 3000 catadores de lixo de Gramacho, que poderiam ser parceiros na reciclagem, como hábeis e eficientes empreendedores sociais.

O direito ambiental internacional oferece dois bons caminhos para simplificar o imbróglio do lixo: aplicar o princípio da ''melhor tecnologia disponível'', a preços condizentes como é o aterro sanitário, apropriado para nosso tipo de lixo, e que não pode ser confundido com o terrível lixão que ainda sobrevive nos municípios vizinhos. Outro princípio é o do poluidor-pagador, que permitiria criar um fundo de compensação para Paciência e a Zona Oeste, com 10% da taxa de lixo, capaz de gerar uma receita de 16 milhões de reais por ano. Dezoito comunidades de Paciência estão de acordo em receber o aterro junto com o Parque Municipal de Paciência, o saneamento básico e outros benefícios sociais, financiados por este fundo que poderia incluir a reintegração dos catadores de Gramacho como pagamento de nossa dívida social. A cidade que abrigou a Conferência de 92 não pode esperar mais um século para inovar sua gestão. Neste contexto, a Câmara de Vereadores, em estreito contato com a as lideranças civis, pode assumir maior protagonismo. Nem a adesão automática nem o protesto paralisante e sem rumo. Será que nosso destino é viver sempre brigando, até pelo lixo?