Título: O aborto e a Constituição
Autor: Hélio Bicudo
Fonte: Jornal do Brasil, 20/09/2005, Outras Opiniões, p. A11

Nestes últimos meses intensifica-se o movimento pró-aborto, num entendimento que não se afina com os institutos legais normatizadores de um direito fundamental, que é o direito à vida.

Criou-se um grupo de trabalho ou coisa que o valha para debater um assunto já exaustivamente discutido em várias áreas que compõem a sociedade brasileira, quer do ponto de vista religioso, ético e científico, quer do ângulo exclusivamente legal.

É exatamente sobre este último prisma que gostaríamos de opinar, mesmo porque o aspecto normativo do problema já é a resultante de debates que se fizeram nos níveis mencionados.

O aborto, na conformidade da lei penal vigente antes da Constituinte de 86/88, onde os tipos criminais descritos conformavam-se com os mandamentos constitucionais do tempo, não era punido quando se tratava de gravidez resultante de estupro ou realizado para salvar a vida da gestante (artigo 128, I (aborto necessário) e II (aborto decorrente de estupro).

Em um e em outro caso, como é óbvio, o abortamento deveria ser precedido de competente exame médico legal. Na hipótese de estupro tem-se admitido que bastaria para a intervenção médica, a apresentação de um boletim de ocorrência (BO) fornecido pela autoridade policial. Quanto ao aborto necessário, a decisão é sempre do médico, naturalmente, com o consentimento da gestante.

Ainda recentemente mero ato administrativo do Ministério da Saúde - claramente repelido pelo ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal - pretendeu entregar ao exclusivo arbítrio médico a realização do aborto em caso de estupro. Trata-se de um escancaramento das portas para o aborto ilegal que, sequer, merece maiores comentários. Como afirmou o ministro, não tem validade jurídica uma norma administrativa que isente médicos de responsabilidade judicial (penal). E, assim mesmo, em uma interpretação inconvicente do nosso ordenamento jurídico, onde a norma constitucional tem mandamento sobre a lei ordinária.

Pois bem, as coisas mudaram com a outorga da Constituição de 88, quando o seu artigo 5º assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à vida. Isto porque o § 2º do disposto nesse artigo esclarece que ''os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte''. É certo que o novo texto, aprovado na chamada reforma do Poder Judiciário, subordina o reconhecimento dos direitos humanos abrangidos em tratados internacionais a processo idêntico ao adotado para o acolhimento de emendas constitucionais (artigo 5º, § 3 , in verbis ''os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes a emendas constitucionais''). É evidente, todavia, que a ressalva não abrange o que já fora concertado nos termos constitucionais contemplados no aludido 2, do mesmo artigo que continua em vigor. Vale, portanto, para os tratados sobre direitos humanos subscritos e ratificados pelo Brasil, a partir da aludida emenda.

Ora, o Brasil subscreveu e ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica, que passou a vigir de 18 de julho de 1978. O Brasil assinou a mencionada Convenção de 22 de novembro de 1.969 e depositou a sua ratificação em 25 de setembro de 1.992. Seis anos depois, em 10 de dezembro de 1.998, reconheceu a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana. Dessa maneira, incorporou seu texto ao capítulo dos direitos e garantias individuais expressos na Constituição Federal.

A Convenção, em seu artigo 4º, estabelece que ''toda a pessoa tem direito de que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção.''

Isto quer dizer que o aborto é ilegal, ainda quando cometido em decorrência de estupro. A lei brasileira somente admite o aborto necessário, para salvar a vida da gestante, nos termos do artigo 19, I, do Código Penal, que contempla a exclusão da criminalidade quando o agente pratica o fato em estado de necessidade''

Destarte, encontramos-nos diante de um direito fundamental - a vida - assegurado a partir da concepção, não importa em que estágio esteja a gestão e as condições do feto. Isso vale para o aborto sentimental e para a questão da manipulação das células embrionárias.

Ao depois, a Constituição afirma (artigo 60, 4º) que não serão objetos de deliberação as propostas de emenda tendentes a abolir, dentre outros, ''os direitos e garantias constitucionais'' (inciso IV)

Convenha-se, portanto que qualquer alteração dos textos em exame somente poderá ser alcançada pelo processo constituinte, para a elaboração de uma nova Lei Magna. Emendas nesse sentido são inadimissíveis.

Em remate: a Constitução é a lex mater. Se consentirmos na sua violação, ainda sob o pretexto de assegurar direitos em abstrato, estaremos instituindo o caos e permitindo que vigore, acima da Constituição, a vontade dos grupos que dominam ou pretendem dominar, sob os mais variados argumentos ou pretextos, o que qualificam de direitos reprodutivos, como se esses direitos fossem exclusivos da mulher.