O Globo, n. 32703, 19/02/2023. Opinião, p. 3

Por uma âncora fiscal virtuosa

Venilton Tadini
Roberto Guimarães



O debate em torno da âncora fiscal brasileira tem ganhado intensidade nos últimos anos, e a necessidade de alterá-la se mostra cada vez mais evidente. Hoje a âncora é alicerçada na Regra de Ouro, na Lei de Responsabilidade Fiscal, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei do Teto de Gastos.

Cada um desses instrumentos cumpre, ou deveria cumprir, um papel importante no equilíbrio das contas públicas. Regra é o que não falta. Há mérito em todas elas, como também pontos negativos que precisam ser corrigidos. Também não faltam pressões sistematicamente atendidas para o aumento de despesas públicas. As despesas primárias do governo federal em relação ao PIB praticamente dobraram nos últimos 30 anos.

Com a entrada em vigor do teto de gastos, a partir de 2017, o Orçamento da União vem sendo cada vez mais engessado. Houve aumento das vinculações e das emendas parlamentares descasadas das prioridades definidas pelo Poder Executivo. Nesse cenário, os cortes de despesas têm sido frequentes e se limitam à redução de investimentos.

Não há dúvida de que o teto teve em sua origem papel importante. Impôs um freio de arrumação na expansão das despesas públicas no curto prazo. Mas, como a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib) alertou por diversas vezes, o fato de não ter sido acompanhado por reformas estruturais inviabilizou o mecanismo — que não representou arcabouço fiscal eficiente com relação à qualidade do gasto público.

Muito se fala da importância do teto de gastos como âncora fiscal. No pós-Real, entretanto, tivemos 15 anos consecutivos de superávit primário sem a presença dessa regra. Com o teto, a partir de 2017, furado diversas vezes, predominou o déficit primário. Para viabilizar o aumento de despesas com benefícios assistenciais e previdenciários e respeitar o limite do teto, os investimentos públicos foram reduzidos aos menores patamares da História, acarretando a deterioração perigosa de rodovias, do saneamento e de outros ativos não concedidos à iniciativa privada.

A alocação de recursos orçamentários é uma questão inequívoca de economia política. Por essa razão, num regime democrático, em que são naturais os interesses conflitantes, é necessário definir um arcabouço fiscal técnico, baseado em premissas sólidas, como responsabilidade fiscal e social, estabilidade, previsibilidade e transparência, perspectiva de longo prazo e flexibilidade para atender a ações anticíclicas nas respostas a choques e crises.

 

Agora que a situação apertou, à voz quase isolada da Abdib, somaram-se outras, inclusive de organismos internacionais como FMI e BID, que já manifestaram interesse em colaborar com o Brasil na criação do novo arcabouço fiscal.

O FMI ressaltou que, para criar o espaço fiscal necessário aos projetos de alta prioridade, é preciso reduzir a rigidez orçamentária. Um estudo do BID mostra que a adoção de regras flexíveis para investimentos públicos não significa menos efetividade da regra fiscal, desde que a alocação de recursos seja eficiente e capaz de aumentar o PIB potencial.

O governo pretende enviar até abril uma proposta de novo arcabouço fiscal ao Congresso Nacional. Ótima notícia. Mas, para que a proposta não se reduza a um puxadinho legal, como tem sido comum no Brasil, ela precisará vir acompanhada das reformas tributária, administrativa e patrimonial e de medidas de redução de benefícios fiscais. Ao mesmo tempo, deve realocar recursos para incentivos à inovação e à reindustrialização, na esteira da transição energética rumo à economia de baixo carbono.

Com isso, teremos o apoio fiscal necessário não só para revertermos as expectativas, como também para não dependermos apenas da política monetária, via elevação das taxas de juros, como único instrumento para estabilização da economia.