O Globo, n. 32706, 22/02/2023. Opinião, p. 2

Congresso deveria mudar lei leniente com garimpo ilegal



É inegável que cabe ao governo Jair Bolsonaro a maior parcela de responsabilidade pela crise humanitária deflagrada com a invasão do garimpo ilegal na reserva ianomâmi em Roraima. Está comprovada a omissão reiterada das autoridades ante pedidos de socorro aos indígenas. Mas a crise não nasceu do nada. Há anos o produto ilegal do garimpo chega a distribuidoras de ouro e joalherias, sob o beneplácito de dispositivos legais lenientes com a procedência, que escancaram as portas do mercado ao tráfico.

A principal responsável pelo fim dos controles na compra de ouro é a Lei 12.844, de 2013. Ela passou a assumir boa-fé dos vendedores, facilitando a venda do minério dos garimpos ilegais. A complacência tem origem nas emendas feitas numa Medida Provisória sobre produtos agrícolas pelo deputado Odair Cunha (PT-MG), a pedido da associação nacional que congrega empresas desse mercado, a Anoro.

O “jabuti” contrabandeado para a MP baixada pela então presidente Dilma Rousseff aplainou o terreno para os garimpeiros, desde então estimulados a invadir terras indígenas. Justificada pela necessidade de desregular o mercado de ouro, a lei do garimpo permitiu também que prestadores de serviços, como pilotos, fornecedores de comida e combustível também pudessem vender o minério nos Pontos de Compra de Ouro (POCs) da região.

Uma das consequências mais nefastas da nova corrida do ouro na Amazônia foi o progressivo domínio do crime organizado sobre a prospecção do metal, com a consequente alta nos índices de homicídio. No estudo “A história de ouro e sangue: as consequências da desregulação do mercado na violência local”, os pesquisadores do Insper Leila Pereira e Rafael Pucci demonstraram com rigor que bem antes de Bolsonaro o garimpo ilegal já era um foco central da explosão de violência na Amazônia.

Eles constataram que, a partir de 2013, a taxa de homicídios em municípios da região com menos de 200 mil habitantes e extração ilegal de ouro cresceu em relação às de cidades sem ouro ou com extração legal. Em razão disso, os homicídios subiram 60% na Amazônia entre 2006 e 2019, período de estabilidade noutros estados. A hipótese usada para explicar a alta não é complexa. Mais competição na mineração ilegal, onde direitos de propriedade não são bem definidos e inexistem mecanismos de mediação de conflitos, leva a disputas violentas, ainda mais considerando o valor alto do ouro e sua liquidez.

Os pesquisadores trabalharam as estatísticas para evitar que os crimes de madeireiros ilegais e outros grupos criminosos inflassem artificialmente os dados. Concluíram que, onde há garimpo ilegal de ouro, existe uma taxa anual adicional de 8,5 assassinatos por 100 mil habitantes. No período de 2006 a 2019, nos municípios sem garimpeiros ilegais, os homicídios caíram 0,48 ponto.

O ministro da Justiça, Flávio Dino, defende a mudança da lei que, com base no princípio da boa-fé, abriu a Amazônia para aventureiros e criminosos. Além de empregar as forças de segurança para retirar os garimpos ilegais das reservas indígenas e de toda a região, tal mudança é essencial. Só com mecanismos de rastreamento do ouro — a exemplo dos que já existem nos mercados de carne ou madeira — será possível expor os traficantes e acabar com os incentivos ao garimpo ilegal.