O Globo, n. 32708, 24/02/2023. Mundo, p. 16

''O conflito marca o fim do pós-guerra fria”

Angelo Segrillo


Apontado como o mais violento conflito armado em solo europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a guerra na Ucrânia deixa um legado de destruição e também de um novo contexto político global. Em entrevista ao GLOBO, Angelo Segrillo, professor de História da USP e um dos principais pesquisadores sobre a Rússia e a exURSS no Brasil, aponta que a invasão de Putin pode marcar o fim de um período de aproximação entre Europa e Rússia iniciado com a queda da União Soviética e servir como ponto inicial de uma nova era multipolar, com EUA e China como potências globais.

Um ano depois do início da invasão russa, já é possível observar a guerra de uma perspectiva histórica?

Eu acredito que essa guerra já marcou um paradigma que é o seguinte: nós tivemos o fim da Guerra Fria com o final da União Soviética, depois tivemos um período pós-Guerra Fria que foi mais ou menos de aproximação. Aquele mundo bipolar havia acabado, a Rússia não era mais comunista e se aproximou do Ocidente nos anos 1990 com o [Boris] Yeltsin. Isso continuou de certa maneira no período inicial de [Vladimir] Putin, mas pouco a pouco foram se criando tensões. E essas tensões foram aumentando até eclodir essa guerra aberta, que formalmente é entre Rússia e Ucrânia, mas que na verdade está afetando o bloco da Otan. O conflito [na Ucrânia] parece marcar o final do período pós-Guerra Fria. Ainda é cedo pra falar isso, mas a guerra também pode marcar um período do final da hegemonia dos EUA. Porque a China está em alta, amparada pelas pressões por um mundo mais multipolar, ao contrário do modelo unipolar do pós-Guerra Fria. Então eu acho que a guerra vai marcar exatamente o final desse período de aproximação entre esses campos [Ocidente e Rússia/China] e o início de um novo período que provavelmente vai ser mais multipolar, com novas tensões que nós ainda não conhecemos.

A guerra também selou o estreitamento dos laços entre Rússia e China, que está sendo fundamental para manter a economia russa nos trilhos...

Nós temos um momento de transição hegemônica. Uma transição como a da Inglaterra, do século XIX, para os Estados Unidos no século XX. Agora parece que estamos caminhando para uma transição hegemônica novamente, com a China prestes a ultrapassar os Estados Unidos como a primeira economia do mundo. E onde entra a Rússia? Ela é uma grande potência por natureza, é um país imenso, com muitos recursos minerais e que ainda tem o maior arsenal [nuclear] do mundo, uma herança da da Guerra Fria. Então, esse poder nuclear, com esse poder natural e o seu tamanho, fazem da Rússia uma grande potência. Mas na competição econômica, ela está caindo, e com esse novo momento, o da guerra, que trouxe muitas de sanções do mundo ocidental, a Rússia está sendo obrigada a se aliar cada vez mais com a China, o que lhe parece favorável porque a China também quer um mundo mais multipolar. Mas há o problema de a Rússia se tornar dependente da China economicamente. Putin quer se tornar independente do Ocidente e pode acabar dependente da China, então esse é um dilema.

Essa questão da dependência econômica pode ser um fator de risco para o poder de Putin, que repetidas vezes prometeu fazer da Rússia uma potência global novamente?

Eu diria que esse é um risco mais no longo prazo do que no momento atual da guerra. Por enquanto, a elite está agrupada em torno de Putin. Aqui no Brasil, não temos essa percepção, mas nos Estados Unidos ou na Rússia, quando há uma guerra, existe um fenômeno que inglês se chama “rally ‘round the flag” (“união em torno da bandeira”). Você vê os Estados Unidos lançarem uma guerra e logo republicanos e democratas se juntam. Na Rússia atual está acontecendo mais ou menos a mesma coisa: o grosso da população, que se informa mais pela televisão, acredita na propaganda do governo russo. O que eles veem lá não é o ucraniano sendo bombardeado, o que eles veem são russos étnicos na Ucrânia sendo bombardeados. A guerra também multiplicou o poder repressivo do Putin, agora ele não precisa mais ficar se escondendo atrás de pequenas demonstrações de democracia, agora é censura direto e pronto. Muitos jovens que queriam uma Rússia mais ocidentalizada simplesmente saíram do país para não serem convocados para o Exército, e muitos que eram contra Putin foram presos, como [Alexei] Navalny. Agora, no longo prazo, se não houver uma vitória decisiva, como não estão conseguindo, e as sanções continuam a afetar a economia, pode haver um desgaste da imagem do Putin, mas ele ainda segue forte hoje.

Podemos afirmar que as relações entre Rússia e Ucrânia estão definitivamente abaladas?

Definitivamente abaladas. Isso se a Rússia não conseguir anexar toda a Ucrânia, conquistando um governo fantoche no lugar. Mas tirando esse cenário, creio que não há mais volta. Hoje Putin está tentando anexar aquelas regiões onde vivem os ucranianos etnicamente russos. E os que ficaram no restante da Ucrânia são os ucranianos “étnicos”, mais ligados ao Ocidente do que à Rússia, e houve um racha, eles agora odeiam a Rússia. Nos anos 1990, alguns deles tinham uma ligação com a Rússia, falavam russo. Mas com a guerra tudo mudou. Também não podemos dizer que todos os cidadãos ucranianos de origem russa são a favor da Rússia, muitos deles não concordam com Putin, mas não podem falar muito. Se falarem, podem ser considerados traidores em suas regiões.

A invasão russa acendeu sinais de alerta em outras ex-repúblicas soviéticas, como na região do Báltico e na Ásia Central, que vinham dando passos para longe de Moscou?

Os países bálticos, como já são parte da Otan, eram os mais anti-Rússia de todos, porque eles foram independentes entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais e foram reanexados, eles antes faziam parte do Império Russo. Então eles eram de uma parte mais antissoviética, e hoje fazem parte da Otan, têm seu guarda-chuva de segurança, estão relativamente tranquilos. Já países como o Cazaquistão, que sempre teve uma boa relação com a Rússia, estão com medo de que os russos façam o mesmo que fizeram na Ucrânia. No ano passado, houve um levante contra o governo central cazaque, e as autoridades pediram a ajuda de tropas da Rússia para controlar a situação, ficando novamente reféns da Rússia. Mas há esse temor também na Moldávia e na Geórgia.

Muitos países não ocidentais adotaram uma postura neutra. Isso pode ser considerado um exemplo desse novo mundo multipolar?

O que eu acho é que, nessa guerra, Putin está tentando jogar todo o resto do mundo contra o Ocidente, incluindo a China, e os EUA estão colaborando de certa maneira porque estão “batendo” muito na China, e isso aliena os chineses. E os demais países, incluindo os países em desenvolvimento, adotaram essa posição de neutralidade também por questões econômicas. Eles dependem muito dos fertilizantes, do trigo da Rússia. Putin está usando essa arma também, para fazer um jogo geopolítico e que pode ter um certo sucesso, uma vez que a China está na mira dos Estados Unidos, que estão travando uma guerra econômica e geopolítica contra Pequim. Estamos em um momento perigoso da História.