O Globo, n. 32710, 26/02/2023. Economia, p. 13

Negociação intensa

Fernanda Trisotto


O  governo está encontrando no Congresso um aliado para superar obstáculos e finalmente tirar do papel a reforma tributária, uma das prioridades da agenda do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Diferentemente do fracasso da ideia no governo de Jair Bolsonaro, a equipe econômica de Lula mostra-se disposta a dar suporte técnico necessário e a negociar formas de desatar os nós da reforma com os parlamentares, que agora estão determinados a assumir o protagonismo do processo para garantir a aprovação de mudanças nos impostos sobre consumo ainda neste ano. Câmara e Senado já mapearam os principais entraves — bem como possíveis soluções —, em torno dos quais, passado o carnaval, as negociações devem se intensificar agora.

Os principais são a perspectiva de elevação da carga tributária para alguns setores, como os de serviços e o agronegócio, a manutenção de incentivos fiscais ligados a setores e regiões e formas de compensar estados e municípios pelos efeitos da principal mudança em discussão: a unificação de cinco tributos em um só imposto sobre valor agregado (IVA). Ele seria composto pelos tributos federais PIS, Cofins e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), pelo estadual Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e pelo municipal Imposto sobre Serviços (ISS). Desatar esses nós vai exigir articulação política, mas conversas já estão em curso.

Nos bastidores, parlamentares iniciaram negociações com os grupos mais insatisfeitos para tentar neutralizar resistências à emenda constitucional, cuja aprovação demanda três quintos dos votos nas duas Casas. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSDMG), foram convencidos de que a aprovação da reforma tributária será o legado da atual legislatura — assim como a reforma da Previdência marcou o primeiro ano da passada —e tentam mostrar a outros parlamentares que ajudar a encontrar soluções para problemas historicamente difíceis trará mais visibilidade aos que souberem influenciar o processo. Para agilizar — e assumir as rédeas —, Lira saiu na frente e criou um grupo de trabalho para discutir as mudanças nos textos que já tramitam e encaminhar um consenso.

— Precisamos construir todas as convergências necessárias para a simplificação e modernização do sistema tributário brasileiro, que passa, necessariamente, pela criação do imposto de valor agregado no consumo —diz Reginaldo Lopes (PT-MG), coordenador do grupo de trabalho.

Tensão federativa

Para a missão, foram escaladas peças-chaves. O relator, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), já trabalha há anos com o texto da proposta de emenda à Constituição (PEC) 45, baseada em trabalho do agora secretário extraordinário para a Reforma Tributária da Fazenda, Bernard Appy, que propõe um IVA com alíquota única em todo o país. Também estão no grupo três ex-prefeitos vigilantes em relação aos interesses das prefeituras e quatro deputados do Amazonas, de olho na manutenção da Zona Franca de Manaus. Appy já afirmou que, para que a reforma não termine elevando a atual carga tributária, o futuro IVA deve ter uma alíquota de 25% (que seria uma das mais altas do mundo), sendo nove pontos percentuais para União, 14 para estados e 2 para municípios.

Essa divisão da arrecadação é mais um dos nós. E já desagradou. Após ouvir a proposta de Appy, o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), um aliado de Lula, chamou o secretário de “técnico autoritário”. Para facilitar, ao menos três deputados que já foram prefeitos foram escalados para o grupo de trabalho. Entre eles, Jonas Donizette (PSB-SP), que governou Campinas e foi presidente da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), que representa as maiores cidades.

Os grandes municípios querem manter a autonomia para gerir o ISS, pleito que converge com pedidos dos estados. Governadores buscam garantir da União uma compensação que pode chegar a R$ 480 bilhões em dez anos pelas mudanças no ICMS. Uma solução em discussão é a criação de um Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR), já aventado nos últimos anos, mas que sofreu forte oposição do então ministro da Economia, Paulo Guedes, no governo Bolsonaro, e travou de vez a reforma. Um ponto crucial em estudo é limitar a apenas estados e municípios a formação do comitê gestor do futuro IVA.

— Vamos dialogar com todos os setores econômicos e entes federados para buscar soluções para que a reforma seja votada e aprovada —diz Baleia Rossi (MDB-SP), autor da proposta que tramita na Câmara.

Daniel Szelbracikowski, sócio do Advocacia Dias de Souza, aponta a redistribuição da arrecadação do IVA como o principal nó a ser desatado, já que cria um problema federativo, além do impacto que uma alíquota única e elevada pode ter para vários setores. A reforma, que parece mais

propensa a desonerar a indústria, pode provocar uma redistribuição da carga tributária. O setor de serviços, por exemplo, responsável por 70% do PIB do país e também o maior empregador de mão de obra, trabalha para evitar um aumento de carga tributária. O deputado Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio, também já afirmou que o setor não está disposto a pagar a conta da reforma.

— O problema não é ter alíquota alta, mas ter apenas uma alíquota alta. É importante, sim, o debate sobre, por exemplo, setores terem cargas similares. A coisa não pode ser feita de supetão — aponta Szelbracikowski. Igor Mauler Santiago, sócio-fundador do Mauler Advogados e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT), acredita que a saída para esse entrave é a reforma prever alíquotas diferenciadas, ainda que em poucas faixas, para setores. Esse modelo também poderia ser usado para distinções entre produtos e regiões geográficas.

— Não tem como tributar uma Ferrari como se tributa um lote de máscara para cirurgia. Isso não faz nenhum sentido —diz o tributarista. Apesar da boa vontade do Congresso, Santiago não vê tanta facilidade para o governo concretizar a ideia de aprovar a reforma ainda no primeiro semestre deste ano. Ele espera uma discussão difícil sobre, por exemplo, como ficariam os benefícios fiscais concedidos a empresas e setores, como a isenção ou redução de ICMS ou IPI, com o desaparecimento desses tributos:

— O que será dos incentivos? Serão mantidos com o imposto novo ou serão eliminados junto com o imposto ao que aderem, ao que se vinculam? Se o imposto novo não tem incentivo, mas o antigo sim, o ideal é fazer uma transição. Tentar resolver tudo com tiro de canhão de uma vez é meio otimista demais e, na prática, a resistência vai ser muito grande.

‘Cada um tem uma reforma’

Pressões externas por causa das questões setoriais são esperadas no Congresso. O deputado Marco Bertaiolli (PSD-SP), da Comissão de Finanças e Tributação, defende que os parlamentares se debrucem para encontrar soluções capazes de reduzir o custo de organização e recolhimento dos tributos, como forma de convencer os setores produtivos:

— Há uma unanimidade em relação à importância da reforma tributária, mas quando você começa a especificar segmentos econômicos, aí entram as divergências de interesses de segmentos, e cada um tem a sua própria reforma na cabeça. Eu entendo que devemos focar nesse momento não na carga tributária, mas sim na forma que essa arrecadação é realizada.