O Estado de São Paulo, n. 46783, 18/11/2021. Notas & Informações p.A3

 

A falta de uma reforma administrativa

 

Eleito sob a promessa de fazer um governo liberal na economia e conservador nos costumes, o presidente Jair Bolsonaro nunca foi um defensor de reformas. Seu histórico como deputado já mostrava isso, mas o mercado se fiou na figura de Paulo Guedes e em seu suposto poder de convencimento para apoiar o então candidato em 2018. Passados quase três anos, a cada dia fica mais claro que as reformas não são prioridade para esta gestão e, dada a qualidade daquilo que efetivamente foi aprovado, talvez seja melhor deixá-las de lado.

Um dos 35 itens da lista de preferências apresentada pelo governo ao Congresso em fevereiro, a reforma administrativa não registra qualquer movimentação na Câmara há quase dois meses, desde que foi aprovada em comissão especial. Há uma semana, Guedes reafirmou a investidores que o texto será votado até o fim deste ano. Enquanto isso, em Dubai, o presidente Jair Bolsonaro anunciou a intenção de dar reajuste salarial aos servidores públicos.

Os recursos para bancar essa política eleitoreira viriam daquela que se tornou a tábua de salvação do governo: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, que institucionaliza o calote de dívidas da União já reconhecidas pela Justiça sob o pretexto de abrir espaço para o pagamento do Auxílio Brasil. É estarrecedor que ninguém no Executivo soubesse dos planos de Bolsonaro até dias atrás.

Nem mesmo os deputados, que já aprovaram a PEC, tinham conhecimento de que estavam dando aval a um reajuste aos servidores. Relator-geral do Orçamento de 2022, o deputado Hugo Leal (PSD-RJ), disse ao Estado que não há espaço para a criação de novas despesas de caráter permanente no texto. Segundo ele, esse aumento não integra nenhuma das planilhas preparadas pela Comissão Mista de Orçamento. E, se já havia resistência no Senado à proposta antes disso, agora o cenário ficou imprevisível.

No meio do ruído e do ceticismo com que a promessa de reajuste foi recebida, o desinteresse do governo na reforma administrativa fica tão evidente que incomoda até o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Nas últimas semanas, ele tem cobrado do Executivo apoio para votar a matéria, pronta para ir a plenário.

Não são votos fáceis de conquistar. Embora o texto final não afete quem já atua no setor público – o que por si só já seria questionável em se tratando de uma pretensa reforma –, quem tem se mobilizado mesmo são os servidores, com propaganda em rádio e TV e pressão sobre parlamentares que desembarcam semanalmente no Aeroporto Juscelino Kubitschek. Só quem não conhece Brasília despreza essa forma de atuação.

Uma correção de 5% nos rendimentos do funcionalismo público custaria R$ 15 bilhões, segundo reportagem do Estado. A maioria dos servidores teve o último aumento em 2017, e parte deles, em 2019. Ainda que a inflação corroa os ganhos de todos e que haja desigualdade gritante entre as carreiras, eles recebem, em média, quase o dobro que o valor pago a trabalhadores do setor privado que exercem função semelhante. Estudo do Banco Mundial mostrou uma situação privilegiada também na comparação internacional. Enquanto o governo federal alocou cerca de 4,3% do PIB em salários em 2019, o México pagou 1,6%; a Colômbia, 2,3%; e a Argentina, 2,5%.

Discutir salários e o custo deles ao erário é importante, mas é apenas parte do que se espera de uma reforma administrativa. Uma proposta consistente vai além de mudanças de regras na política de Recursos Humanos e passa por tornar o Estado mais eficiente e moderno. Entregar serviços de qualidade para os cidadãos deve ser primordial, assim como combater o patrimonialismo e o corporativismo.

Proteger castas vai de encontro a esses objetivos. Favorecer agentes de segurança pública, não por sua relevância como representantes do monopólio legítimo do uso da força, mas apenas por serem base de apoio do bolsonarismo, fica longe desses princípios. Excluir o Judiciário e o Ministério Público da reforma, donos das maiores benesses do setor público, é, mais do que absurdo, imoral.