O Globo, n. 32712, 28/02/2023. Saúde, p. 19

Novo cenário

Bernardo Yoneshigue


Enquanto o mundo chega ao terceiro ano da pandemia, e o Brasil dá início a uma nova etapa da vacinação contra a Covid-19 com as doses bivalentes, um item muito comum no início da crise sanitária tem desaparecido cada vez mais: as máscaras. Embora em locais abertos elas tenham saído de cena há um tempo, em ambientes fechados ainda surge a dúvida se a proteção deveria ser usada ou não.

De acordo com o levantamento mais recente da Confederação Nacional da Indústria (CNI) sobre o tema, no final do ano passado metade da população brasileira ainda dizia colocar a máscara em lugares como shoppings e cinemas. Mas com os casos graves da doença estáveis em patamares mais baixos e versões adaptadas dos imunizantes para a variante Ômicron, o uso ainda é necessário?

De acordo com as orientações gerais da Organização Mundial da Saúde (OMS), que foram atualizadas no último mês, as máscaras são recomendadas para “qualquer pessoa em um espaço lotado, fechado ou mal ventilado”. Já o Ministério da Saúde, em análise também de janeiro, manteve a recomendação de que o item seja utilizado nesses ambientes apenas por pessoas de maior risco para agravamento da Covid-19, como idosos, imunocomprometidos, gestantes e pessoas com comorbidades.

Especialistas ouvidos pelo GLOBO concordam que a máscara não é necessária ao ar livre e que os mais vulneráveis devem utilizá-la nos locais fechados. Porém divergem em relação ao uso pela população geral nesses ambientes. A infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), é uma das que concordam com as diretrizes do ministério:

— O uso é indicado em ambientes com alto nível de transmissão, como fechados, com pouca ventilação natural e aglomeração, para pessoas com risco de doença mais grave, que também inclui os não vacinados ou que não completaram o esquema vacinal ou pessoas que não fazem parte desses grupos, mas que moram com elas —diz.

Já o vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Cláudio Maierovitch, ex-presidente da Anvisa e médico sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), defende que, no cenário atual, ainda seria importante que mesmo pessoas saudáveis adotassem a máscara em locais fechados.

— Na minha opinião, a recomendação de uso apenas por grupos de risco joga a responsabilidade da proteção sobre aqueles que precisam ser protegidos. Nós já aprendemos que não precisamos da proteção ao ar livre, em locais com distanciamento ou com ventilação boa. Mas nos ambientes fechados, ou aglomerados, ainda acredito que todos deveriam utilizar máscaras — afirma o especialista.

O epidemiologista David Soeiro, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e chefe do Laboratório de Epidemiologia de Doenças Infecciosas e Parasitárias da universidade, lembra que as diretrizes da OMS sugerem ainda uma avaliação baseada na tendência local da doença.

— Há a orientação com base em uma avaliação de risco, onde devem ser consideradas as tendências epidemiológicas locais, como o aumento dos níveis de hospitalização e níveis de cobertura vacinal —explica.

Por outro lado, o professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fiocruz, Julio Croda, considera que no estágio atual da pandemia o uso do item é uma decisão pessoal, e não mais coletiva, e por isso não há necessidade da utilização por pessoas saudáveis.

— Antes nós utilizamos a máscara como uma medida de saúde pública, quando todos usávamos. Porque 50%, 60% da população usando adequadamente traz impacto na redução de danos. Mas passamos dessa fase graças às vacinas, e hoje focamos nos grupos mais vulneráveis e naqueles com sintomas —afirma.

Apesar das divergências, o uso por pessoas saudáveis em hospitais —que são locais com maior circulação de indivíduos com risco elevado de agravamento pela doença — ou por aquelas com sintomas da Covid-19 é consenso entre especialistas e autoridades.

Eles acreditam que as doses bivalentes não devem impactar de forma significativa no que diz respeito às infecções devido à velocidade com que subvariantes da Ômicron conseguem gerar quadros de reinfecção, mesmo nos imunizados.

— Ainda assim, a bivalente é importante porque são grupos que sabidamente perdem de forma mais rápida a proteção pela vacina, ou que não respondem da forma adequada, e estão há mais de quatro meses da última dose. O que esperamos é que ela mantenha a proteção contra hospitalização e óbito —ressalta Stucchi, da SBI.

Eficácia das máscaras

Recentemente, o uso das máscaras voltou à tona depois que uma revisão de 78 estudos, conduzida por pesquisadores britânicos e publicada na Cochrane Database of Systematic Reviews, concluiu que não há como atestar a eficácia do item para reduzir a transmissão de doenças infecciosas. No entanto, os especialistas ouvidos pelo GLOBO reforçam que o item é sim eficaz, e que a metodologia dos trabalhos analisados não é adequada para avaliá-lo.

— A própria análise não diz que as máscaras não funcionam, diz que os estudos não são capazes de chegar a uma conclusão. E de fato não são. Mas você não precisa de um estudo para observar, por exemplo, se um goleiro reduz o número de gols —diz Cláudio Maierovitch.

A publicação tem sido disseminada como uma evidência da ineficácia das máscaras, porém o estudo não faz tal afirmação. Pelo contrário, diz que o “alto risco de viés nos ensaios, a variação na medição dos resultados e a adesão relativamente baixa às intervenções durante os estudos dificultam a obtenção de conclusões firmes”.

— É uma revisão que incluiu estudos cuja maioria não é da época da Covid-19. E grande parte é do tipo que recomendava o uso de máscaras como estratégia individual, sem verificar a adesão, se ela estava sendo feita de forma adequada, se familiares utilizavam, só se sabia que foi orientado o seu uso. E a análise deixou de fora uma série de trabalhos importantes que apontam o impacto positivo do uso de máscaras como uma política de saúde. Mas o que acontece é que essa revisão foi traduzida por grupos negacionistas como se a máscara não funcionasse — acrescenta Croda.

Máscaras em aviões

A proteção também retornou ao debate nas últimas semanas depois que o Conselho Federal de Medicina (CFM) enviou um ofício à Anvisa alegando não haver evidências científicas para a obrigatoriedade do item em aeroportos e aviões, mas sim possíveis “agravos à saúde”.

A agência respondeu defendendo a eficácia das máscaras e alegando monitorar o cenário epidemiológico especialmente no momento de maior circulação de passageiros devido ao Carnaval. Para Croda, a questão é a obrigatoriedade como uma medida de saúde pública atualmente.

— O uso nos aviões já poderia ter sido liberado porque não se justifica como uma medida isolada —diz o infectologista.

No entanto, Maierovitch lembra que transportes públicos no geral, incluindo metrôs e ônibus, costumam ser ambientes com grandes aglomerações e pouca ventilação, o que os tornam mais propícios para a contaminação. Por isso, sugere que a máscara seja considerada.