O Globo, n. 32654, 01/01/2023. Opinião, p. 2

O melhor que Lula pode fazer pela democracia



Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito para o terceiro mandato empunhando a bandeira da democracia. Sua posse hoje marca a vitória inequívoca das instituições sobre as ameaças autoritárias dos últimos anos. Mas o governo Lula também começa sob a égide de preocupações graves, que terão impacto na própria estabilidade democrática se não forem levadas a sério.

A maior delas é a incerteza econômica. Os primeiros passos do novo governo, antes mesmo da posse, já resultaram num aumento de gastos públicos estimado em 2,5% do PIB. Como o Estado brasileiro tem funcionado com um déficit estrutural — receitas menos despesas recorrentes — na casa dos 2% do PIB, há necessidade premente de ajuste fiscal, do contrário a explosão inevitável da dívida pública porá em risco a estabilidade da moeda. O próprio Fernando Haddad, novo ministro da Fazenda, reconheceu ao GLOBO que será preciso “arrumar a casa” nos três primeiros meses de governo.

Lula sabe bem o significado da inflação para aqueles que mais defende, os pobres. Tanto que, na campanha eleitoral, falava o tempo todo em pôr o pobre no Orçamento. Por óbvio, ninguém pode ficar inerte diante do flagelo da pobreza. Mas os pobres foram apenas um pretexto usado na PEC da Transição para romper o teto de gastos. Financiar o programa de transferência de renda sofrível herdado do governo Jair Bolsonaro custaria R$ 52 bilhões além do já previsto no Orçamento. Só que a PEC autorizou até R$ 168 bilhões em gastos além do teto. Parte será consumida em aumentos salariais para a elite do funcionalismo, garantia de piso salarial a profissionais de enfermagem e outras despesas que nada têm a ver com a redução da miséria.

O primeiro passo para combater a pobreza é saber quem são os miseráveis, onde vivem e que tipo de ajuda recebem. Mas, em vez consertar o formato do auxílio aos pobres, o novo governo preferiu fazer um remendo para criar um benefício à infância, ao custo de mais R$ 18 bilhões. Nunca se gastou tanto em combate à pobreza, a ajuda emergencial virou permanente, o desemprego caiu, mas a miséria não dá trégua. Para erradicá-la, não bastará simplesmente distribuir dinheiro.

Na montagem de sua equipe, Lula também abriu espaço a toda sorte de devaneio desenvolvimentista, dos tempos em que o BNDES era fonte de crédito barato a empresários amigos, e estatais como Petrobras ou Banco do Brasil eram antros de corrupção. Está nos planos da nova gestão interromper privatizações avançadas (como Correios ou refinarias) e retomar o controle em empresas privatizadas (como Eletrobras). A intenção é interromper até a liquidação da Ceitec, fábrica de chips defasada, que jamais serviu para conquistar nem mercado nem tecnologia — e já custou R$ 800 milhões. Só falta ressuscitar a reserva de mercado da informática ou a política de conteúdo nacional em plataformas de petróleo...

O Brasil precisa avançar rápido noutras áreas, sobretudo educação, saúde, segurança, meio ambiente e combate à corrupção. De nada adiantará insistir na ladainha sobre a “herança maldita” do antecessor. É com base nas respostas da equipe que toma posse que o governo Lula 3 será julgado. Será preciso ter clareza sobre as metas, diagnósticos corretos, capacidade de escolher políticas públicas eficazes, habilidade ao executá-las, disposição para avaliá-las continuamente e corrigir os erros. Nada seria mais revolucionário num país acostumado a achar que os problemas são milagrosamente resolvidos com o mero anúncio de verbas milionárias.

Se Lula acredita que o sucesso econômico de seus primeiros mandatos resultou da mistura de crédito dos bancos estatais com investimento público, e que basta repetir a fórmula, dará com os burros n’água. A China, outrora sustentáculo da onda de commodities que levantou a economia brasileira, não cresce mais como antes. Boa parte do mundo está à beira da recessão. Se o governo não fizer o necessário para conquistar credibilidade, qualquer esperança de crescimento robusto naufragará. É contraproducente ficar atacando êxitos das gestões anteriores, como as leis trabalhistas, a Lei das Estatais ou o programa de privatizações. O Brasil não precisa de retrocesso.

Haddad prometeu, além de rever desonerações e benesses eleitoreiras de Bolsonaro, uma nova âncora fiscal para até o final do primeiro semestre. Pode ser tarde demais. Em princípio, o teto de gastos nem precisaria ser substituído. Mas, uma vez que foi destelhado, será preciso criar um conjunto de regras confiáveis para controlar a dívida da União. Haddad também afirmou que daria prioridade à reforma tributária. É uma decisão sensata. Outra reforma urgente é a administrativa. Lula faria bem em cuidar de ambas. Ele não terá quatro longos anos para aprovar seus projetos mais ambiciosos. Precisa aproveitar com sabedoria o período de lua de mel, que deverá ser curto.

O Brasil começa um novo capítulo de sua História com desafios imensos. Lula chega ao poder embalado na narrativa redentora do injustiçado que resistiu e foi ungido pelo povo. Mas não deveria criar ilusões. Só chegou lá porque reuniu uma ampla frente antibolsonarista, capaz de superar o antipetismo em nome da democracia. Em seu governo, precisará zelar por essa coalizão plural, sob pena de afugentar os aliados. As hostes bolsonaristas, embora derrotadas, continuam à espreita. Não têm apreço pelas instituições democráticas e aproveitarão qualquer deslize para alimentar suas próprias narrativas. Lula não pode se dar ao luxo de errar em temas críticos como a economia, ou rapidamente sua popularidade entrará em parafuso, em benefício do maior adversário. O melhor que poderá fazer pela democracia brasileira é um governo competente, que esvazie o apelo do autoritarismo para a população.