O Globo, n. 32654, 01/01/2023. Opinião, p. 2

Um novo caminho

Merval Pereira


Começa hoje mais um capítulo da formidável saga de vida de um nordestino que chegou à presidência da República num país injusto e desigual graças a um senso político nato inigualável. Como toda saga, a de Lula teve necessariamente altos e baixos, e sua ação marcou a história do país, para o bem e para o mal. Por tramas do destino, que nem sempre lhe foi favorável, saiu da cadeia para voltar ao poder representando, mesmo para aqueles que nunca haviam votado nele, a alternativa viável para a defesa da democracia.

A mesma democracia que seu partido e as alianças que forjou, paradoxalmente, feriram ao permitir um ambiente de corrupção política na tentativa de controlar o Congresso. Ser a alternativa a um governante perverso e incompetente não seria em si grande coisa, mas o fato é que sua vitória para um terceiro mandato só ocorreu por ter sido ele o único candidato capaz de reunir em torno de si forças da sociedade que o tornaram majoritário sem que seu partido o fosse, e sem que muitos dos que votaram nele tenham superado restrições graves por conta do mensalão e do petrolão.

Sua história de vida, no entanto, sua genuína preocupação com os mais pobres, sua brasilidade, permite que seja possível esperar que não repetirá os erros que cometeu, mesmo que não os admita. Quando, em 2003, não aceitou o acordo que o então todo poderoso Chefe da Casa Civil José Dirceu havia feito, e recusou a presença do PMDB no primeiro ministério, agiu de acordo com uma visão política correta, de quem viu “300 picaretas” no Congresso depois de ser deputado federal. Não resistiu, porém, às necessidades pragmáticas da política do cotidiano. Cometeu o erro de resolver o problema com a visão política do sindicalismo de resultados, dando aos partidos políticos a chave do cofre das estatais.

 

Hoje, poder e dinheiro andam de mãos dadas, graças aos esquemas dos governos petistas, exorbitados pela renúncia de Bolsonaro que, antes mesmo de abandonar o país rumo à Disney, havia aberto mão do controle do orçamento para o Centrão. Bolsonaro trabalhou com a expectativa de outro poder, o ditatorial, e falhou. Lula tem uma visão hegemônica da política, e se acha o único que tem a solução dos problemas. Tanto que fez de Dilma sua sucessora, na certeza de que a governaria, e depois retornaria ao poder. Ledo engano.

O destino dá agora a Lula chance de fechar (?) seu ciclo político de maneira diferente daquela que o levou para a prisão. Já conseguiu recuperar a reputação oficial com a anulação de suas condenações e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de considerar o então juiz Sérgio Moro parcial. Conseguiu vencer uma eleição difícil, tanto pelo antipetismo decorrente dos escândalos passados, quanto pelo uso indiscriminado do poder público para reeleger Bolsonaro.

Se fosse outro o candidato, Bolsonaro provavelmente estaria entre nós, e não em fuga. Antes mesmo de começar o terceiro mandato, Lula já demonstrou sua capacidade de negociação política dentro da disfuncionalidade de nosso presidencialismo de coalizão. Teve que aceitar o orçamento secreto, essa excrescência como bem definiu, mas agora já está liberado pelo STF para não precisar se submeter à chantagem política do presidente da Câmara, Athur Lira.

Colocou políticos na distribuição de cargos do primeiro escalão, esperemos que sem a contrapartida fisiológica, poder em vez do dinheiro. Ou verba bem alocada, que resulte em resultados eleitorais pelo bem que trouxerem. Cercou-se de petistas nas áreas mais importantes, como Fazenda, Gabinete Civil, Educação, Desenvolvimento Social. Mas encontrou lugar para nove partidos, uma distribuição de cargos que corresponde ao poder político de cada um deles. E à ideia de “frente ampla” de sua candidatura.

Em que pesem vários nomes políticos que não parecem ter estatura ou currículo, a qualidade do ministério pode ser medida pela comparação: Nísia da Silveira na Saúde, com Pazuello; Camilo Santana, na Educação, com a experiência exitosa no Ceará, e o pastor Milton Ribeiro; Flávio Dino com Anderson Torres; Marina Silva com Ricardo Salles, da Defesa, José Múcio Monteiro com o General Paulo Sérgio; Mauro Vieira no Itamaraty com Ernesto Araujo, e a volta dos ministérios da Cultura, com Margareth Menezes; do Planejamento, com Simone Tebet; da Indústria e Comércio com Geraldo Alckmin. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem dado declarações consistentes com a necessidade de equilíbrio fiscal, embora a PEC da Transição tenha passado perigosamente do que seria razoável.

Abre-se um novo caminho.

Feliz Ano Novo a todos.