O Globo, n. 32654, 01/01/2023. Opinião, p. 3

O desafio do ajuste fiscal de 2023-2026

Mansueto Almeida


Mais uma vez, o Brasil começa um novo governo com a difícil tarefa de fazer um ajuste fiscal. Se o déficit primário (receita menos despesa, sem incluir o pagamento de juros) do governo central for por volta de R$ 100 bilhões (1% do PIB) em 2023, isso significa que, ao longo de quatro anos, teríamos de fazer um ajuste fiscal de, no mínimo, R$ 300 bilhões (3% do PIB) para conseguir um superavit primário de R$ 200 bilhões no último ano de governo e estabilizar a dívida pública bruta (em relação ao PIB). Mas como fazer um ajuste fiscal dessa magnitude? Não é fácil porque hoje não estamos na situação da década de 1990, quando a carga tributária do Brasil estava próxima à média da América Latina, e a opção na época foi pelo forte aumento nela de 25% para mais de 30% do PIB. Nos anos 2000, aumentou ainda mais graças à onda de commodities e aos "atos normativos" da Receita Federal.

Hoje o Brasil tem uma carga tributária perto de 34% do PIB, 10 pontos percentuais do PIB (R$ 1 trilhão) acima da média da América Latina. Se a opção for manter a despesa primária constante como proporção do PIB, isso significa que teremos de fazer o ajuste fiscal de R$ 300 bilhões aumentando carga tributária. Não dá, pois isso levaria a um corte no investimento privado, a menos crescimento, mais desemprego e talvez mais pobreza.

Nem mesmo com a desejável revisão de benefícios tributários seria possível aumentar tanto a arrecadação. Exemplos de benefícios tributários são muitos: a possibilidade de dedução integral da despesa com saúde privada da renda tributável, redução do IPI das empresas na Zona Franca de Manaus, Imposto de Renda menor para pessoas jurídicas sem empregados (pessoa jurídica personalíssima) no regime de lucro presumido, faixa excessivamente elevada de faturamento para empresas participarem do Simples, diferimento do Imposto de Renda dos fundos exclusivos, aumento da faixa de isenção para aposentados e pensionistas quando completam 65 anos de idade etc. O ideal do ponto de vista de ajuste fiscal no próximo governo seria adotar alguma regra de redução da despesa (como porcentagem do PIB), com a revisão de benefícios tributários. Quanto maior o sucesso na revisão de benefícios tributários e no corte de despesas, menor será o risco de aumento de impostos ao longo dos próximos anos.

Mas o que fazer para colocar "o pobre no orçamento" e cortar despesas? Há muitos "não pobres" no orçamento. O desafio é reduzir despesas com programas pouco distributivos para programas mais focados nos mais pobres. Por exemplo o Bolsa Família, que de 2003 a 2019 nunca passou de R$ 50 bilhões por ano (0,5% do PIB), passará agora a ser um programa de R$ 175 bilhões (1,7% do PIB) por ano. Apesar de ser um programa social focalizado nos mais pobres, que despesas foram reduzidas para que não haja um aumento da despesa do governo central? Não está clara a resposta para essa pergunta.

O Brasil nos últimos anos economizou muito com a despesa com pessoal ativo e inativo da União, que passou de 4,3% do PIB, em 2018, para 3,5% do PIB, em 2022. Mas, mesmo com essa economia expressiva, a despesa do governo central crescerá em 2023 com a aprovação da PEC da Transição de R$ 168 bilhões, e teremos déficit primário.

Dado que o Brasil é um país com despesa pública alta e uma carga tributária muito elevada para nosso nível de renda, o desafio continua sendo mudar a composição do gasto público, o que exigirá, entre outras coisas, cuidado com a política de valorização do salário mínimo. A aritmética é simples: 70% dos benefícios previdenciários do Orçamento da União são exatamente de um salário mínimo. Se houver aumentos reais expressivos do mínimo, não haverá como controlar o crescimento da despesa com Previdência e o gasto público total, qualquer que seja a nova regra fiscal. Em resumo, o desafio do novo governo é mudar a composição da despesa do governo central para incluir o "pobre no orçamento", rever benefícios tributários e estabelecer alguma nova regra para controlar o crescimento do gasto público. Se fizer isso, conseguirá criar o ambiente favorável para a queda da taxa de juros, a redução do serviço da dívida do setor público e a continuidade do aumento do investimento privado, que já cresceu mais de R$ 500 bilhões (5 pontos do PIB) desde 2017.