Valor Econômico, v. 20, n. 4874, 06/11/2019. Brasil, p. A3

Integração fiscal e uso da dívida como âncora são base do ‘pacto’
Edna Simão
Fabio Graner
Lu Aiko Otta
Mariana Ribeiro
Vandson Lima


O governo finalmente divulgou o pacote de medidas de reforma do Estado. Depois de adiamentos e desidratações de última hora, o Plano Mais Brasil foi entregue a lideranças do Congresso Nacional pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, junto com o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Composto de três Propostas de Emendas Constitucionais (PECs), que serão complementadas por outras medidas previstas para as próximas semanas, o governo colocou em marcha um ambicioso processo de descentralização de recursos e reforma no desenho fiscal brasileiro, para reduzi-lo e dar mais liberdade de gestão.

A “transformação do Estado” apresentada ontem prevê a integração de regras fiscais (Lei de Responsabilidade Fiscal, “regra de ouro” e teto de gastos), com a definição formal de que a dívida pública será a “âncora” para a definição das metas. Permite a distribuição para Estados e municípios de R$ 400 bilhões em 15 anos de recursos do petróleo que a União teria direito. Autoriza a unificação dos pisos de gastos em educação e saúde para cada uma das três esferas de governo. Reduz os repasses do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) ao BNDES pela metade.

O plano cria o Estado de Emergência Fiscal, que permitirá o acionamento de gatilhos automáticos, principalmente de cortes de despesas, para a estabilização das contas da União, Estados e municípios. Esse mecanismo valerá para o governo federal, quando estiver desenquadrada da “regra de ouro”

 (que veda o endividamento para pagar gastos que não são investimentos) no momento do envio do Orçamento. Para Estados e municípios, quando as despesas ultrapassarem 95% das receitas.

Nesses casos, os gatilhos, como redução de 25% da jornada de trabalho dos servidores e suspensão de reajustes e promoções, serão automáticos e terão validade de um ano, sendo renovados até o equilíbrio ser atingido. Segundo Paulo Guedes, nenhuma crise fiscal dura mais do que um ano e meio e, com a economia crescendo a um ritmo mais forte, o ajuste ocorrerá rapidamente após o travamento das despesas.

O novo programa de reforma do Estado cria o Conselho Fiscal da República, um colegiado composto pelos presidentes dos três Poderes, do Tribunal de Contas da União (TCU), governadores, prefeitos, entreoutros representantes do governo. Aumenta o poder do TCU para uniformizar entendimentos sobre contabilidade pública, de forma a enquadrar Estados que hoje fazem maquiagem de gastos com pessoal.

Uma das principais contrapartidas que o plano deve impor é que, a partir de 2026, os Estados terão que “andar com as próprias pernas”, não podendo mais tomar empréstimos de instituições financeiras estatais (BNDES, Banco do Brasil e Caixa), bem como de fundos e autarquias, enão poderão mais ter operações com garantia da União ou renegociar suas dívidas com ela. O projeto coloca em risco de extinção mais de 1,2 mil municípios com menos de 5 mil habitantes e que tenham menos de 10% de receitas próprias. Nesses casos, a ideia é que sejam incorporados a municípios maiores.

O conjunto mais amplo de medidas está na chamada PEC do Pacto Federativo, que ainda propõe a revisão de benefícios tributários a cada quatro anos, com a União comprometendo-se a trabalhar com no máximo 2% do PIB desse tipo de incentivo a partir de 2026. Atualmente, está em 4,4% do PIB.

O secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, garantiu que a medida não elevará a carga tributária, pois a revisão será compensada com redução tributária em outras áreas.

Essa PEC define também que Estados e municípios poderão, se a medida for aprovada, impor contingenciamento de gastos para seus Legislativos e Judiciários locais, como já ocorre na União, para uma melhor gestão de suas contas.

O Plano Mais Brasil traz ainda uma PEC Emergencial, que permitirá o acionamento de gatilhos para corte de despesas por prazo de dois anos e que na prática é uma versão enxuta e de acionamento mais rápido das medidas da PEC do Pacto Federativo. O governo propôs, também, emenda para tirar o carimbo de R$ 220 bilhões de fundos como o penitenciário, permitindo o pagamento de dívida pública e mais liberdade de gestão orçamentária.

Guedes afirmou que a proposta do governo é de criar “um marco institucional na área fiscal para cem anos”. Ele afirmou que, apesar de o país ainda não ter aprovado o projeto de autonomia do Banco Central, existe uma cultura de estabilidade monetária e que isso precisa ser estendido para o campo fiscal. “Ainda não temos cultura de responsabilidade fiscal, apesar de termos a Lei de Responsabilidade Fiscal [LRF]”, disse. “Temos milhares de municípios quebrados, dezenas de Estados quebrados e a União só não quebra porque se endivida”, completou.

Guedes disse que o programa do governo é transformar o Estado brasileiro em várias dimensões: tributária, administrativa e de descentralização de recursos. As duas primeiras serão ainda tratadas em outras propostas de reforma: tributária, unificando tributos, e administrativa, reduzindo e racionalizando carreiras.

Ele observou ainda que a retirada da proposta de desindexação de despesas obrigatórias (um dos três “D” originais) para garantir os reajustes, por exemplo, dos benefícios previdenciários atendeu a um pedido do presidente Jair Bolsonaro. Segundo o ministro, o presidente tem uma “grande intuição política” e achou que era “muito cedo para desindexar tudo”.

Ao entregar as propostas ao Congresso, Bolsonaro avaliou que até meados do próximo ano o pacote de medidas econômicas apresentado pelo governo estará aprovado. 

 “Temos certeza que em pouco tempo, talvez no início do ano que vem, em meados do ano que vem, no máximo, essa proposta se tornará uma realidade e ela fará muito bem para todos nós.” Bolsonaro afirmou estar “muito emocionado, muito feliz em participar desse momento ao lado de pessoas tão ilustres, em especial o Davi Alcolumbre”, disse, em referência ao presidente do Senado.

Davi Alcolumbre (DEM-AP) afirmou que o presidente da República tem “apoio incondicional” do Congresso, mas evitou garantir a aprovação das propostas de emenda à Constituição como enviadas pelo Poder

Executivo. “Este Parlamento será o mais reformista da história do Brasil. O Parlamento tem consciência de que as propostas do governo federal conciliam com as nossas”, disse. “Mas a gente não precisa concordar com tudo. Precisa buscar a conciliação”, concluiu.